Em termos da nossa história, a demonstração do resultado do exercício é uma informação relativamente nova. Mas anteriormente existia a Conta de Receitas e Despesas, que fazia o papel da DRE (1). E esta conta, como o nome já diz, mostrava os valores destes dois itens do resultado.
O que é interessante e importante notar é que a Conta de Receita e Despesas era muito evidenciada para as entidades os entes públicos e o terceiro setor desde antes da nossa independência. Não sei a razão para que isto tenha ocorrido na história da contabilidade brasileira, mas arriscaria uma explicação: o desenvolvimento dos empreendimentos econômicos era, durante a presença da família real portuguesa e do império, restrito a alguns poucos setores econômicos, em particular a agricultura e extração mineral.
Conforme já mostramos aqui em outras postagens, talvez a primeira evidenciação contábil tenha ocorrido numa entidade do terceiro setor, mais especificamente no
Theatro de S João. O que é também importante destacar que a divulgação contábil de outras entidades do terceiro setor logo após a proclamação da independência era muito usual. Mas mais importante ainda é que existia uma pressão para esta divulgação, conforme veremos, em outra postagem, sobre a Santa Casa de Ouro Preto.
Logo após a independência, diversas entidades assistenciais divulgavam a Conta de Receita e Despesa. Qual a razão desta evidenciação? Talvez a resposta tenha sido dada pela administração do Imperial Collegio de S Joaquim, que em 1823 divulga seu resultado com a seguinte informação (2):
Como seja do primeiro dever de qualquer Cidadão, encarregado de administrar Estabelecimentos Públicos, o darem provas de sua conducta, honra, e inteireza no bem servir a essa administração; vamos por isso rogar-lhes queiram VV. M. fazer publico pela sua folha a conta demonstrativa da Receita, e Despeza que temos feito na administração o Imperial Collegio de S Joaquim, a fim de que ella vejam os nossos Concidadãos, o quanto se faz digno do Publico socorro este Estabelecimento, pelo bem que resulta já no presente, como no futuro, o sustentar-se a prosperidade dele, que nada menos he, que a do Imperio Brasilico, educando-se aquelles que um dia ham de pugnar pelos Direitos da nossa prosperidade.
Observe que o texto indica claramente o papel da evidenciação contábil como forma de prestar contas (conhecida nos dias de hoje como accountability). Mas além de “darem provas de sua conducta, honra e inteireza”, a divulgação serve também para que as pessoas possam ver o trabalho desenvolvido pelo Collegio, fazendo-se possível a doação de recursos ou o “Publico socorro”.
A preocupação com a boa evidenciação esta presente num caso interessante, quando o tesoureiro dos Lazaros fez divulgar uma errata da Conta de Receita e Despesa, indicando que anteriormente os erros de impressão impediam que a soma destas duas contas conduzissem ao total indicado (3).
Além de ser usada no terceiro setor, a Conta de Receita e Despesa também estava presente na contabilidade pública. Entretanto, é necessário destacar que não se tratava de “receita”, mas sim recebimento e nem “despesa”, mas saída de dinheiro. Em 1823, portanto logo após a independência, uma discussão no legislativo contemplou a seguinte frase de Ribeiro de Andrade (4):
Diz o Ilustre Preopinante que antigamente se mandavão das Provincias os respectivos balanços ao Erario; eu não me oponho a isso; mas seja-me permitido dizer que balanços não são Relatorios que possão servir para deles se tirarem exactas informações do Estado da Provincia, porque balanço não he outra cousa se não a conta da receita e despeza de uma Provincia.
Observe que Ribeiro de Andrade afirma existir prestação de contas na área pública, mas que não existiam balanços, somente a Conta de Receita e Despesa. Mas o certo é que existiu uma expansão desta Conta por diversas entidades da administração pública. Em 1826 havia uma proposta no Senado, na Comissão de Saúde Pública, solicitando que o Intendente Geral da Polícia preste conta da receita e despesa do Polícia (5). Em 1825 o regulamento do Hospital de S. Pedro de Alcantara da cidade de Goiás (atual Goiás Velho), indicava, no Título III, dos empregados do hospital, que o diretor teria “os livros necessarios para a conta da receita, e despeza” (6). Havia críticas naquela época ao foco nesta Conta. Algumas pessoas sabiam que somente esta conta não seria suficiente para evidenciar a situação das entidades públicas. Eis o disse o Visconde de Caravellas sobre o assunto (7):
Huma simples conta de receita, e despeza não nos pode dar huma idéa exacta da situação da Camara: para isso faz-se necessario que ella dê hum balanço geral, por onde conste o seu rendimento anual, as suas dividas tanto activas, como passivas, quanto esta consignado para a amortisação destas, a quanto montão as despesas ordinarias &c [etc]; de outro modo he impossível fazermos sobre isto huma idéa tão precisa, como desejamos, e he mister.
Mas tudo leva a crer que havia a adoção da Conta era bastante difundida na área pública. Um exemplo é que em 1830 a Província de São Paulo aprova as contas da Camara de Antonina (8). É bem verdade que esta expansão no uso da Conta de Receita e Despesa era decorrente de uma imposição legal. Afinal, em 1826 um decreto legislativo afirmava que na Administração e Economia das Províncias era necessário remeter, anualmente, “a conta da receita, e despeza da PRovincia, depois de fiscalizada” (9)
Finalmente, é interessante notar que não existia uma padronização do exercício contábil. A Conta da Receita e da Despesa da Caixa Pia Ecclesiastica referia-se ao período de fevereiro de 1829 a março de 1829 (10). O Imperial Collegio de S Joaquim divulgou em 1825 a sua Conta do período compreendido entre 1º. De Agosto de 1824 a 31 de julho de 1825 (11). E em alguns casos divulgava-se a informação de períodos menores que um ano, como foi o caso da Santa Casa da Misericordia, que evidenciou sua Conta do último trimestre de 1828 (12).
Notas
(1) Observe o leitor que o nome era “Conta da Receita, e da Despeza” conforme pode ser notado a seguir
(2) Império do Brasil. Diário do Governo, 1823, edição 2, p. 316. Transformou-se mais tarde no Colégio Dom Pedro II.
(3) Império do Brasil. Diário do Governo, 1824, edição 3, p. 76. É interessante notar que Lázaros significava doentes de hanseníase.
(4) Diário da Assemblea Geral Constituinte Legislativa do Imperio do Brasil, 1823, ed. 59, p. 14.
(5) Diário da CAmara dos Senadores do Imperio do Brasil, 1826, ed 32, p. 1. Esta proposta foi posteriormente recusada.
(6) Imperio do Brasil Diario Fluminense, 1825, ed. 5, p. 98.
(7) Diário da Camara dos Senadores do Imperio do Brasil, 1826, ed 18, p. 10.
(8) O Farol Paulistano, 1830, ed. 433, p. 1. Neste caso aprovou-se a conta de receita de 1829, mas a aprovação da despesa ficou pendente. A cidade de Antonina fica perto de Curitiba. Naquela época, o Paraná fazia parte de São Paulo.
(9) Imperio do Brasil, 1826, ed. 49, p. 20. Eis o princípio da anualidade, não do orçamento, mas da execução do dinheiro público.
(10) O Farol Paulistano, 1829, ed. 204, p. 4. Um aspecto curioso é que a Conta foi aprovada em 25 de março de 1829. Isto não era exclusividade do terceiro setor. A Conta da Camara da cidade de São Paulo de 1828 referia-se ao período de 17 de março de 1827 a 9 de fevereiro de 1828. Vide O Farol Paulistano, 1828, ed. 101, p. 1.
(11) Imperio do Brasil Diario Fluminense, 1825, ed. 5, p. 265.
(12) Esta demonstração também apresentava dados não monetários, como o número de enfermos, pobres, falecidos, etc. Imperio do Brasil Diario Fluminense, 1829, ed. 13, p. 66.