Artigo sobre orçamento público, publicado no Estadão:
A falácia do orçamento autorizativo
João Henrique Pederiva
O atraso ocorrido na votação do orçamento federal deste ano de 2008 e o início da tramitação das diretrizes orçamentárias para 2009 estimulam algumas reflexões sobre o valor do orçamento público. Seria razoável supor que, após tantos tropeços e conflitos, os orçamentos, veiculados em leis ordinárias, fossem executados sem maiores dificuldades. Não é isso, contudo, o que evidencia a prática brasileira.
No âmbito das finanças públicas e até do Direito Financeiro, o orçamento público é considerado uma peça de ficção. Ouve-se, das mais diversas autoridades públicas - do Executivo, do Legislativo, do Judiciário, das esferas federal, estadual, distrital ou municipal - e privadas, que o orçamento público brasileiro é meramente autorizativo. Isso significa que ele fixa um teto de gastos que pode ou não ser observado, conforme o exclusivo critério dos gestores públicos. Há notícias de que até mesmo tal limite de teto é, eventualmente, desobedecido, sem conseqüências mais sérias para os infratores.
Entretanto, essa situação não condiz com o ideal das estruturas normativas vigentes, a começar pelo princípio republicano que rege o nosso Estado democrático de Direito. A República respalda o dever de o agente público prestar contas, a qualquer momento, não apenas sobre o que faz, mas também acerca do que deixa de fazer. Afinal, as suas decisões se referem ao patrimônio ou à coisa comum, com reflexo sobre todos os cidadãos.
A Constituição federal de 1988, em seu artigo 174, afirma, categoricamente, que o planejamento é determinante para o setor governamental e indicativo apenas para o setor privado. Mais de 20 anos antes da atual Constituição, o artigo 7º do Decreto-Lei nº 200, de 1967, já definia o orçamento público como um dos quatro instrumentos básicos do planejamento, ao lado dos planos e programas nacionais, setoriais e regionais, do programa de governo e da programação financeira. Portanto, segundo o mais elementar raciocínio dedutivo, no nosso Estado democrático de Direito, o orçamento deveria ser determinativo, ao menos para os agentes públicos.
A existência de um Estado de Direito remete ao império da lei, ou seja, à observância das normas por todos os cidadãos, ainda que estejam em situação de comando da coisa pública. A democracia concerne à igualdade de oportunidades, nas definições dos direitos e das obrigações, assim como nas tomadas de decisões públicas. Decorre desse princípio a exigência de que o prévio conhecimento sobre as conseqüências das decisões, inclusive da não-execução orçamentária, seja privilégio compartilhado por todos os cidadãos. Tal exigência reduz as incertezas nos contratos sociais e fornece uma base tão sólida quanto possível para as escolhas dos agentes econômicos nas alocações de recursos escassos.
Como peça de ficção, o orçamento não atende ao Estado de Direito, ao fixar normas que não são cumpridas. Tampouco se mostra democrático, ao tornar desiguais os cidadãos, por intermédio do acesso diferenciado às oportunidades decorrentes da incerteza sobre a execução orçamentária. Nem satisfaz a condição republicana, em razão da falta de prestação de contas a respeito do não-cumprimento das determinações orçamentárias.
O principal argumento técnico para a incerteza orçamentária, nas aplicações dos recursos públicos, repousa na variação das receitas. Assim, o fluxo das saídas de caixa precisa ser adequado ao das entradas. A programação financeira, contudo, não é suficiente para tal ajustamento, uma vez que a execução orçamentária permitiria a criação de obrigações que pressionariam as demandas por recursos no futuro.
Com o intuito de ajustar as execuções financeira e orçamentária aos fluxos das receitas, a Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101, de 2000, artigo 9º) estipula o contingenciamento - a limitação de empenho e movimentação financeira - como o instrumento hábil para assegurar a certeza da execução orçamentária. Ao definir o universo das dotações orçamentárias que não serão realizadas, o contingenciamento permite estabelecer a certeza sobre a execução das demais dotações. Ou deveria, como qualquer outra prescrição normativa que vise à segurança institucional.
Em outras palavras, a incerteza orçamentária associada ao caráter pretensamente autorizativo do orçamento público não se harmoniza com os objetivos fundamentais da nossa República Federativa, expressos no artigo 3º da nossa Constituição federal. Tampouco satisfaz a demanda privada por segurança jurídica e regras institucionais condizentes com os interesses de investimento. Em suma, a falácia do orçamento autorizativo não atende aos interesses nacionais. É um mecanismo anacrônico e contraproducente de coordenação da formulação e da execução das políticas públicas.
Por conseguinte, há que resgatar o valor normativo do orçamento público. Tal resgate envolve toda a nossa sociedade, inclusive os Poderes, na exigência processual de diálogo e compreensão do outro, sem o que o impasse dos conflitos orçamentários não se resolve no Estado democrático e republicano de Direito. O respeito ao devido processo orçamentário consiste numa demonstração inequívoca do respeito à pluralidade, por parte de representantes e representados políticos. A superação da falácia do orçamento autorizativo reafirma os princípios que nos permitem superar as diferenças individuais e, efetivamente, integrar a expectativa de República Federativa constituída em Estado democrático de Direito. Essa é uma parte essencial e inalienável da nossa identidade como cidadãos brasileiros.
João Henrique Pederiva, advogado, professor universitário, mestre em Ciências Contábeis (UnB) e doutorando em Ciências Sociais (Ceppac-UnB), é consultor de Orçamentos do Senado Federal
No Estado de S. Paulo de 8/5/2008, p. A2