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24 março 2021

UGC, Petrobras, CVM, CPC ...

 No final do ano passado, a Comissão de Valores Mobiliários reuniu seus diretores para julgar os procedimentos contábeis da Petrobras relacionados com o teste de impairment e a atuação dos seus executivos, que assinaram as demonstrações contábeis. 

A questão começou quando denúncias de corrupção na Petrobras começaram a aparecer no noticiário policial e político. Haveria uma esquema, onde alguns diretores receberiam uma percentagem pelas decisões que seriam realizadas na empresa. Alguns fornecedores, interessados em vender para a Petrobras, pagavam uma comissão sobre o valor da transação e este dinheiro era usado para fins políticos e particulares. 

Mas como isto passava pela contabilidade da empresa? O valor adicional nas compras é complicado de ser rastreado, mas fez com que os eventos fossem registrados incluindo a comissão cobrada pelos diretores. Descoberto o esquema, este adicional deveria ser considerado como uma despesa. Diante da recusa do auditor em assinar um balanço onde o ativo estaria superestimado em razão da comissão cobrada, a gestão da empresa finalmente concordou em levar a resultado uma grande parcela do ativo sob a forma do teste de impairment. 

Este teste obriga a empresa a comparar o valor registrado na contabilidade com aquele usado nas transações do mercado e com o fluxo de caixa que será gerado, trazido a valor presente. Se o valor existente na contabilidade estiver superestimado, isto deveria ter sido considerado no resultado da empresa ao longo do tempo. E realmente isto aconteceu, já que nos anos anteriores a Petrobras tinha feito decisões de investimento inadequadas, colocando recursos em projetos inviáveis financeiramente. 

Como o teste de impairment é uma espécie de alerta para os usuários da informação de que a empresa tomou decisões inadequadas no passado, em geral não é bem aceita pelo mercado. Assim, há uma regra informal na contabilidade de tentar ser reprovado no teste. Em outras palavras, o nome "teste" não é gratuito: se houver lançamento como despesa é sinal de que a empresa foi reprovada no teste em razão de decisões passadas ruins. 

A questão da Petrobras é o gigantismo dos números. Em 2015 a empresa publicou seus resultados com perdas de 45 bilhões de reais. Uma perda tão grande não aparece do nada. 

A área técnica da CVM resolveu investigar as demonstrações de 2010 a 2014. Depois de analisar documentos da empresa, a área técnica fez alguns questionamentos para as pessoas que comandavam a Petrobras no período. Com a resposta, alguns pontos nebulosos surgiram e o caso foi levado para julgamento. A decisão se a empresa agiu corretamente ou não deveria ser dos diretores da entidade que regula o mercado de capitais. 

O grande problema é que o teste de impairment é muito subjetivo. Sua aplicação deve ser feita pelas empresas, usando uma comparação de três valores: o valor que está registrado na contabilidade, o valor usado no mercado e a riqueza que será gerada a valor presente. O primeiro valor é bem objetivo. O segundo é um pouco menos, dependendo do que estiver sendo mensurado. Mas o terceiro é muito subjetivo e depende da opinião de quem está fazendo o teste. 

Se o teste fosse usado para cada item que a empresa possui, o custo de seu cálculo tornaria impraticável o procedimento. Em lugar disto, é possível juntar os itens em grandes "unidades", chamada de geradora de caixa (UGC é a sigla usada). E assim calcular as três medidas necessárias para cada UGC da empresa. Há um requisito necessário para fazer isto: é preciso "coerência" por parte da empresa. Em termos práticos, a coerência significa que um item que estava em uma UGC não deve ir para outra UGC ou ficar de fora do teste. 

Foi exatamente isto que ocorreu na Petrobras entre 2010 e 2014, conforme comprovou a área técnica da CVM. Olhando a UGC chamada de refino, a Refinaria Abreu e Lima e o Complexo do Rio de Janeiro, a área técnica percebeu grandes incoerências nos procedimentos da Petrobras. 

Veja o caso da Refinaria Abreu e Lima. Em 2010, quando começou o teste de impairment no Brasil, não foi feito o teste para esta Refinaria. No ano seguinte, a Petrobras fez o teste e concluiu que a Refinaria tinha "passado". Em outras palavras, o valor da contabilidade era menor que a riqueza que a unidade iria gerar no futuro, conforme a estimativa da empresa. Em 2012, a Refinaria foi incluída dentro da UGC Refino e foi feito um único teste. Nada de anormal foi constatado. Isto também ocorreu nos anos seguintes. 

Quando começaram a surgir as notícias dos escândalos da Petrobras, a contabilidade separou a Refinaria Abreu e Lima. Isto não era "coerente" com o procedimento anterior. Uma parte continuou na UGC Refino e o teste não acusou nada. Mas a outra parte, correspondente ao "2o. trem de refino" da unidade, foi testada e foi reprovada. Enquanto a contabilidade tinha um registro de 16,5 bilhões de reais para esta parte da refinaria, o teste chegou a um resultado de 7,4 bilhões. Diante do teste, a contabilidade registra o novo valor e a diferença aparece no resultado da empresa, com um sinal negativo. Veja que o valor do teste é menos que a metade do valor registrado e a Petrobras só percebeu isto após surgirem as notícias informando dos desvios de recursos. 

O caso do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro também é parecido. Em 2010, a Petrobras não fez o teste. Em 2011, a empresa fez um teste parcial, do primeiro trem de refino somente. O resultado foi um "aprovado". Em 2012, o primeiro trem foi novamente testado, agora dentro da UGC Refino. Mas o segundo trem não foi testado. No ano seguinte, o Comperj foi testado na sua globalidade, dentro da UGC Refino.

O ano de 2014 foi um divisor para a empresa. Com um teste isolado da UGC Refino, o Complexo Petroquímico chegou a um resultado de 4 bilhões de reais. Ao olhar no registro contábil era possível perceber um valor de R$25,8 bilhões. E esta diferença só foi percebida em 2014. 

Mesmo diante deste números, os diretores e membros dos conselhos da empresa alegaram que isto tudo era muito técnico. E como a área técnica da empresa era bastante competente e estava seguindo as regras internas da empresa, confiaram nos valores apresentados. Para finalizar, lembraram que isto passou pelo olhar dos auditores, que não reclamaram do que estava ocorrendo na empresa. 

Todas as alegações foram, de certa forma, aceitas pelos diretores da Comissão de Valores Mobiliários. Pode parecer que este tenha sido o grande problema deste caso, mas realmente não foi. Como afirmado antes, o teste não é objetivo. Vale o valor colocado pela empresa e o responsável pela correção do teste, aqui a CVM, não pode reprovar, mesmo que a situação tenha sido tão surreal. 

04 março 2021

Caso de Impairment da Petrobras


Li a enorme peça produzida pela CVM sobre o caso da Petrobras para as demonstrações contábeis de 2010 a 2014 (SEI 19957.005789/2017-71). O material pode ser dividido em quatro partes. A primeira é o relatório produzido pela área técnica da CVM, onde são considerados pontos relacionados com a UGC Refino, a Comperj e a Refinaria Abreu e Lima, a RNEST. A segunda parte é a defesa dos acusados, com diversos argumentos, inclusive contábil. A terceira parte é o segundo relatório da área técnica, onde alguns pontos da acusação existente na primeira parte foram deixados de lado. A quarta parte é o relato dos diretores da autarquia, basicamente absorvendo os acusados. 

Antes de qualquer coisa, gostaria de deixar claro que considero que o teste de impairment é uma regra subjetiva e como tal trata muito mais de uma opinião da empresa. Assim, julgar se ocorreu erro ou não somente em algum caso de um erro de cálculo grosseiro. 

No caso, a área técnica da CVM tenta argumentar contra dois pontos básicos que ocorreram na empresa: a própria Petrobras sabia que a Comperj e a RNEST não eram viáveis, segundo relatórios internos; e a empresa usou uma taxa de desconto inadequada para calcular os fluxos presentes, menor que a taxa usada no parque já instalado. Sobre o primeiro ponto, é possível imaginar que estes relatórios seriam provisórios e não devem confundir com o teste. Para o segundo, reproduzo parte do trecho do relator:

Os argumentos apresentados pela Companhia e trazidos pelas defesas me convenceram que os parâmetros utilizados nos cálculos das taxas de desconto não guardam relação obrigatória com o fato de a RNEST estar em estágio pré-operacional e as outras refinarias operando, sendo possível, portanto, que resultem em uma taxa menor para o ativo em construção, como de fato resultaram no presente caso.

O fato da taxa de desconto de um projeto novo ser menor que projetos existentes é algo estranho. Projetos já consolidados possuem um risco menor que um novo projeto. Pode ocorrer? Sim, mas não é usual. A empresa alega que a estrutura de capital do novo projeto era diferente. Mas realmente não convence. 

O relator indica que o uso da UGC para o teste de impairment pode ser "interessante" (este termo é meu):

Esse tratamento contábil, pelo qual a avaliação periódica dos valores recuperáveis é feita para a UGC, e não para cada ativo, pode fazer com que eles compensem entre si suas respectivas performances e que eventuais perdas individuais sejam absorvidas por ganhos em outras unidades. Com isso, o conjunto, ao fim do exercício, pode não ter qualquer desvalorização reconhecida em balanço, ainda que algum de seus componentes, caso fosse testado isoladamente, pudesse ter perdas reconhecidas.

Neste ponto, o relator não concorda com a empresa, que incluiu a RNEST dentro da UGC de Refino, sem que a refinaria fosse efetivamente da Petrobras (era uma parceria com a venezuelana PDVSA). Mas sua posição foi vencida pelos dois outros diretores. Ou seja, nada de punição. 

Trata-se de um caso interessante.