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28 julho 2024

Sumidoro de Responsabilidade

Nesse momento, milhares de páginas já foram escritas sobre o que ocorreu nas Americanas. Para quem esteve ausente das notícias financeiras dos últimos dois anos, ficamos sabendo que a empresa varejista Americanas estava manipulando a contabilidade para parecer que sua situação era melhor do que aparecia nos balanços. O anúncio dos problemas com a empresa fez desabar o preço de suas ações. Como os investidores do mercado de capitais perderam uma grande quantidade de dinheiro, os reguladores se viram compelidos a atuar. Inicialmente, a Comissão de Valores Mobiliários e, no atual estágio, a Polícia Federal estão atuando para entender o que ocorreu, como ocorreu e quem foi o culpado.

As notícias atuais estão apontando a acusação para o executivo Miguel Gutierrez. As notícias se sucedem e, em muitas delas, a empresa declara que está ajudando as autoridades a tentar esclarecer o que realmente ocorreu. Se, inicialmente, o trio de proprietários da empresa e o executivo que anunciou os problemas foram questionados, parece que agora os esforços são no sentido de acusar alguns poucos executivos. Queremos saber quem são os culpados e vamos tentar encontrá-los. Nesse sentido, Gutierrez parece ser o personagem ideal para o papel de vilão e responsável por tudo que ocorreu.

Para entender melhor o que ocorreu nas Americanas, talvez a melhor leitura não seja um complexo manual de contabilidade sobre risco sacado ou as normas existentes sobre o assunto. Ler sobre o papel das empresas de auditoria no processo pode ajudar, mas o quadro ainda fica incompleto. Um resgate da história empresarial do Brasil pode ser útil para entender as relações entre os empresários e o governo. A busca por escândalos passados também pode criar um bom entendimento sobre o quadro geral. Nos últimos dias, estava lendo uma pequena obra que me ajudou a ter uma boa visão do que ocorreu com as Americanas. E não é um livro de contabilidade, regulação ou auditoria, mas uma obra que tenta entender a crise de responsabilidade (accountability, em inglês) no mundo atual.

Enquanto jogamos confete no papel atual da governança corporativa e nos mecanismos modernos que constituem o sistema, o que estamos vivendo é exatamente o oposto: existe uma máquina onde as pessoas não podem ser punidas por suas ações justamente devido às regras do manual. Em "The Unaccountability Machine - Why Big Systems Make Terrible Decisions – and How the World Lost Its Mind" (algo como "A Máquina da Inimputabilidade - Por que Grandes Sistemas Tomam Decisões Terríveis – e Como o Mundo Perdeu a Mente"), Dan Davies mostra como estamos vivendo em um sistema de incentivos onde as organizações têm uma tendência a tomar comportamentos inadequados. Uma situação típica é definir metas de rentabilidade irreais e subinvestir nos departamentos jurídicos e nos sistemas de conformidade. Parece que foi algo desse tipo que ocorreu.

Para Davies, ocorreu a criação de mecanismos que isentam os tomadores de decisão - executivos e políticos - de punição por decisões ruins. Esta é a crise de responsabilidade. Veja o caso da auditoria. Em 1887, quando a profissão moderna do auditor estava nascendo, Bourne afirmava: "O objetivo de uma auditoria é duplo: a detecção de fraudes onde elas foram cometidas e sua prevenção, impondo salvaguardas e desenvolvendo meios que tornem sua realização extremamente difícil, mesmo que haja inclinação nesse sentido." Staub, alguns anos depois, em 1904, em um congresso internacional de contadores, indicava que "o objetivo do auditor deve ser, principalmente, triplo: (1) detecção de fraudes, (2) descoberta de erros de princípio, (3) verificação da exatidão mecânica das contas." Mas, nos dias atuais, quando surge um grande escândalo contábil, o auditor que deixou passar o problema se defende dizendo que este não é seu objetivo. Típica crise de responsabilidade indicada por Davies.

Há uma crise de responsabilidade, mas o caso das Americanas parece contradizer o problema. Afinal, sabemos que a culpa dos problemas foi do executivo que liderou a empresa durante tantos anos. Afinal, em sua gestão, a empresa construiu o mecanismo que permitiu que dívidas não aparecessem no balanço. Mas será que sabemos mesmo quem foram os responsáveis? Por enquanto, estamos escutando somente uma parte da versão dos fatos. E o papel do comitê de administração, da empresa de auditoria e do comitê de auditoria? E os controladores, que impuseram metas irreais para a empresa? Será que os bancos, que financiaram a empresa durante tantos anos, são também inocentes? E os analistas de investimento que recomendaram a compra da ação da empresa, sem uma investigação decente? E a pobre da Comissão de Valores Mobiliários, que não percebeu o que estava ocorrendo e somente reagiu depois que o fato se tornou público? Veja que a minha lista de possíveis responsáveis ainda está incompleta. Mas quem realmente é o responsável pelo que ocorreu com a empresa? Esta crise de responsabilidade promoveu o que Davies chama de sumidouro. Ou seja, o arcabouço disso tudo foi construído durante muitos anos de tal forma que se cria um escudo que impede que as pessoas sejam punidas. Nós já vimos isso durante o julgamento de Nuremberg, na crise da General Electric, no caso da Petrobrás, entre incontáveis outros.


O processo começa com a criação de um livro de regras, removendo a ligação do ser humano com o processo de decisão. E, quando o escândalo aparece nos jornais e força os reguladores a atuarem, torna-se muito difícil encontrar o culpado. Gutierrez, o ex-executivo que atualmente é o vilão, agiu da forma como agiu por ter incentivos para fazê-lo. Esses incentivos decorrem de uma política de gestão implementada por um grupo de investidores que considera que a principal razão de ser de uma empresa é a agregação de valor. E o discurso de agregação de valor foi ensinado e criado...

Afinal, de quem é a responsabilidade? "Essa propriedade de não haver ‘ninguém para culpar’ é a definição do que constitui um sumidouro de responsabilidade", afirma Davies. Além de permitir que possamos entender o que ocorreu com as Americanas, também será possível entender como será o processo de punição dos responsáveis, se houver (processo e responsáveis).


10 setembro 2012

Banco Rural

Pela primeira vez, o Supremo Tribunal Federal condenou ex-dirigentes de uma instituição bancária por gestão fraudulenta no bojo de uma ação penal - o julgamento do mensalão [1]. Ao considerarem culpados a ex-presidente e acionista do Banco Rural Kátia Rabello, o ex-vice-presidente operacional José Roberto Salgado e o ex-diretor Vinícius Samarane, hoje vice-presidente na instituição, os ministros estabeleceram as balizas sobre as quais o Judiciário deve apreciar, daqui para frente, esse tipo de crime. [2]

O colegiado concluiu que um executivo de instituição financeira pode ser processado criminalmente pelo delito sem que o Banco Central faça ou encerre um procedimento administrativo para apurar eventuais irregularidades - na primeira instância da Justiça Federal, não são incomuns condenações sem amparo em expediente do BC. [3]

O Supremo entendeu que o crime de gestão fraudulenta pode ocorrer mesmo sem levar uma instituição à quebra [4]. A Corte decidiu que a cúpula do banco, incluindo diretores, vices e presidente, pode ser responsabilizada penalmente por irregularidades.[5]

Juristas, criminalistas e advogados de réus do mensalão avaliam que o STF adotou o "Direito penal do inimigo", alargou o princípio da individualização de conduta do acusado e atropelou o conceito do crime de gestão fraudulenta ao enquadrar nesse delito atos típicos de gestão temerária, como descumprimento de regras do BC e negligência na concessão de financiamentos. [6]

"Esse alargamento é perigoso", afirma o criminalista Leônidas Scholz. "É como imputar crime ao marceneiro que fez a cama de um adultério. No caso das instituições financeiras, não se pode potencializar o cargo para a esteira do domínio do fato." [7]

Scholz alerta que julgamento de mérito de ação penal em plenário do Supremo se torna vinculante. "Vai ter um efeito pedagógico na rotina das instituições financeiras, principalmente. Executivos terão que tomar muito mais cuidado", diz. "Até presidente do banco vai ter que examinar tudo o que passa por baixo, nos escalões inferiores. Isso vai gerar sentimento de que é preciso redobrar a cautela, a formalidade, a burocracia interna." [8]

"No julgamento (do mensalão), a gestão fraudulenta atropelou a gestão temerária, isso é verdade", avalia o criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, que defende a executiva Ayanna Tenório, única integrante do Rural absolvida. "Se houve alguma responsabilidade (dos dirigentes), foi por gestão temerária, e não por fraudes." [9]

Campo. O advogado Alberto Zacharias Toron criticou o posicionamento adotado pelo Supremo [10]. "A Corte está ampliando muito o campo de incidência da gestão fraudulenta." Toron observa que gestão fraudulenta pressupõe o uso deliberado de expedientes para causar prejuízo ao sistema bancário. Advogado do deputado João Paulo Cunha (PT-SP), já condenado pelo STF, Toron defende o executivo Luiz Sebastião Sandoval, ex-presidente do Grupo Silvio Santos, no caso que envolve o rombo bilionário no Banco PanAmericano. "O que fica claro para mim é que o Supremo vai julgando os casos ao sabor do vento." [10]

Para o criminalista José Carlos Dias, que defende Kátia Rabelo, o entendimento firmado pelo Supremo permitirá que, em outros casos, toda a cúpula de um banco seja acusada por atos praticados por subalternos [5]. "(O julgamento) abre um precedente perigoso, não só nos casos de crimes financeiros, mas na maneira da aceitação de certas teses como o domínio do fato. Isso pode trazer consequências graves se mal interpretado por outros juízes."

Maurício de Oliveira Campos Júnior, advogado de Vinícius Samarane, afirmou que o julgamento poderá, em outros casos, abrir caminho para a punição de dirigentes de bancos, mesmo que afastados das decisões que supostamente caracterizam fraudes. /

Decisão sobre Rural cria jurisprudência - 9 de Setembro de 2012 - O Estado de São Paulo - RICARDO BRITO, FELIPE RECONDO e FAUSTO MACEDO

[1] Isto tem um efeito muito relevante para a sociedade. Este fato não foi comentado no texto: o STF está dizendo que o país condena banqueiros.
[2] Isto foi comentado no Fato da Semana
[3] Ou seja, o judiciário declarou independência do executivo.
[4] Isto é meio óbvio.
[5] Delega-se tarefas, não responsabilidade. Este lema da administração finalmente foi reconhecido pelo direito brasileiro.
[6] A partir deste ponto o texto tornou-se tendencioso. Observe que só escutaram os advogados, que receberam uma enorme quantia em dinheiro, para defender seu clientes e fracassaram. Parece "choro de perdedor".
[7] Esta comparação é horrível. O banco cometeu um crime.
[8] E isto já não deveria ser feito desde sempre? Não é para isto que serve a auditoria interna e a controladoria?
[9] Não é ele que deve dizer isto.
[10] Enviesado.