Nesse momento, milhares de páginas já foram escritas sobre o que ocorreu nas Americanas. Para quem esteve ausente das notícias financeiras dos últimos dois anos, ficamos sabendo que a empresa varejista Americanas estava manipulando a contabilidade para parecer que sua situação era melhor do que aparecia nos balanços. O anúncio dos problemas com a empresa fez desabar o preço de suas ações. Como os investidores do mercado de capitais perderam uma grande quantidade de dinheiro, os reguladores se viram compelidos a atuar. Inicialmente, a Comissão de Valores Mobiliários e, no atual estágio, a Polícia Federal estão atuando para entender o que ocorreu, como ocorreu e quem foi o culpado.
As notícias atuais estão apontando a acusação para o executivo Miguel Gutierrez. As notícias se sucedem e, em muitas delas, a empresa declara que está ajudando as autoridades a tentar esclarecer o que realmente ocorreu. Se, inicialmente, o trio de proprietários da empresa e o executivo que anunciou os problemas foram questionados, parece que agora os esforços são no sentido de acusar alguns poucos executivos. Queremos saber quem são os culpados e vamos tentar encontrá-los. Nesse sentido, Gutierrez parece ser o personagem ideal para o papel de vilão e responsável por tudo que ocorreu.
Para entender melhor o que ocorreu nas Americanas, talvez a melhor leitura não seja um complexo manual de contabilidade sobre risco sacado ou as normas existentes sobre o assunto. Ler sobre o papel das empresas de auditoria no processo pode ajudar, mas o quadro ainda fica incompleto. Um resgate da história empresarial do Brasil pode ser útil para entender as relações entre os empresários e o governo. A busca por escândalos passados também pode criar um bom entendimento sobre o quadro geral. Nos últimos dias, estava lendo uma pequena obra que me ajudou a ter uma boa visão do que ocorreu com as Americanas. E não é um livro de contabilidade, regulação ou auditoria, mas uma obra que tenta entender a crise de responsabilidade (accountability, em inglês) no mundo atual.
Enquanto jogamos confete no papel atual da governança corporativa e nos mecanismos modernos que constituem o sistema, o que estamos vivendo é exatamente o oposto: existe uma máquina onde as pessoas não podem ser punidas por suas ações justamente devido às regras do manual. Em "The Unaccountability Machine - Why Big Systems Make Terrible Decisions – and How the World Lost Its Mind" (algo como "A Máquina da Inimputabilidade - Por que Grandes Sistemas Tomam Decisões Terríveis – e Como o Mundo Perdeu a Mente"), Dan Davies mostra como estamos vivendo em um sistema de incentivos onde as organizações têm uma tendência a tomar comportamentos inadequados. Uma situação típica é definir metas de rentabilidade irreais e subinvestir nos departamentos jurídicos e nos sistemas de conformidade. Parece que foi algo desse tipo que ocorreu.
Para Davies, ocorreu a criação de mecanismos que isentam os tomadores de decisão - executivos e políticos - de punição por decisões ruins. Esta é a crise de responsabilidade. Veja o caso da auditoria. Em 1887, quando a profissão moderna do auditor estava nascendo, Bourne afirmava: "O objetivo de uma auditoria é duplo: a detecção de fraudes onde elas foram cometidas e sua prevenção, impondo salvaguardas e desenvolvendo meios que tornem sua realização extremamente difícil, mesmo que haja inclinação nesse sentido." Staub, alguns anos depois, em 1904, em um congresso internacional de contadores, indicava que "o objetivo do auditor deve ser, principalmente, triplo: (1) detecção de fraudes, (2) descoberta de erros de princípio, (3) verificação da exatidão mecânica das contas." Mas, nos dias atuais, quando surge um grande escândalo contábil, o auditor que deixou passar o problema se defende dizendo que este não é seu objetivo. Típica crise de responsabilidade indicada por Davies.
Há uma crise de responsabilidade, mas o caso das Americanas parece contradizer o problema. Afinal, sabemos que a culpa dos problemas foi do executivo que liderou a empresa durante tantos anos. Afinal, em sua gestão, a empresa construiu o mecanismo que permitiu que dívidas não aparecessem no balanço. Mas será que sabemos mesmo quem foram os responsáveis? Por enquanto, estamos escutando somente uma parte da versão dos fatos. E o papel do comitê de administração, da empresa de auditoria e do comitê de auditoria? E os controladores, que impuseram metas irreais para a empresa? Será que os bancos, que financiaram a empresa durante tantos anos, são também inocentes? E os analistas de investimento que recomendaram a compra da ação da empresa, sem uma investigação decente? E a pobre da Comissão de Valores Mobiliários, que não percebeu o que estava ocorrendo e somente reagiu depois que o fato se tornou público? Veja que a minha lista de possíveis responsáveis ainda está incompleta. Mas quem realmente é o responsável pelo que ocorreu com a empresa? Esta crise de responsabilidade promoveu o que Davies chama de sumidouro. Ou seja, o arcabouço disso tudo foi construído durante muitos anos de tal forma que se cria um escudo que impede que as pessoas sejam punidas. Nós já vimos isso durante o julgamento de Nuremberg, na crise da General Electric, no caso da Petrobrás, entre incontáveis outros.
O processo começa com a criação de um livro de regras, removendo a ligação do ser humano com o processo de decisão. E, quando o escândalo aparece nos jornais e força os reguladores a atuarem, torna-se muito difícil encontrar o culpado. Gutierrez, o ex-executivo que atualmente é o vilão, agiu da forma como agiu por ter incentivos para fazê-lo. Esses incentivos decorrem de uma política de gestão implementada por um grupo de investidores que considera que a principal razão de ser de uma empresa é a agregação de valor. E o discurso de agregação de valor foi ensinado e criado...
Afinal, de quem é a responsabilidade? "Essa propriedade de não haver ‘ninguém para culpar’ é a definição do que constitui um sumidouro de responsabilidade", afirma Davies. Além de permitir que possamos entender o que ocorreu com as Americanas, também será possível entender como será o processo de punição dos responsáveis, se houver (processo e responsáveis).