Será que o regime de competência poderia ter antecipado a crise do setor público brasileiro? Esta é uma pergunta instigante e que merece reflexão. Segundo o historiador Jacob Soll (via How good accounting can save the world – including Greece, Adrian Rollins,
Intheblack) a boa contabilidade é essencial para a construção de sociedades fortes e prósperas. O argumento de Soll (
imagem) encontra respaldo nas cidades italianas, na França antes da revolução e também na moderna Grécia.
O grande problema das finanças públicas brasileira nos anos recentes foi a “pedaladas”. Este termo é a síntese de uma série de manobras que foram realizadas, particularmente a partir da Secretaria do Tesouro Nacional, para obter resultados positivos. Como a contabilidade brasileira funciona basicamente através do regime de caixa, as pedaladas constituiu um mecanismo capaz de atrasar o pagamento das despesas. A adoção de um regime de competência efetivo, sem a lorota de regime misto, seria um obstáculo a estas manobras?
É interessante notar que o governo do ex-presidente Lula tomou-se a decisão de adotar as normas internacionais de contabilidade. E um dos fundamentos destas normas é exatamente o regime de competência. Entretanto, existia uma nítida preocupação de “apuração de custo”. Aqui tivemos, inclusive, uma contradição, já que o espírito propagado era da adoção do custeio direto, “sem rateios” (uma grande balela que a teoria de custos já tinha detonado há anos). Acontece que o custeio direto não é o mais adequado para o regime de competência.
Ao mesmo tempo, a grande quantidade de itens patrimoniais do governo federal inviabilizou a adoção das normas dentro do prazo previsto. Postergação na data de início da adoção da depreciação terminou sendo inevitável. Além disto, não estava clara a razão das normas, já que a decisão de ordem financeira do governo federal ainda continuava vinculada aos critérios políticos (e partidários) e o orçamento ainda era o foco do processo. Em outras palavras, o regime de competência ainda não foi alcançado.
A pedalada caracterizava por postergar a realização financeira de certas despesas. Assim, o governo atrasava o repasse do dinheiro para a Caixa efetuar os pagamentos de benefícios sociais. Em termos de caixa, o que importava era o momento do repasse. Na teoria no regime de competência a despesa deveria ser considerada em confronto com a receita. Esta regra perde o sentido na área pública. De qualquer forma, existindo a contabilidade pela competência seria muito mais provável que a “dívida” do governo com a Caixa aparecesse na contabilidade. Se o balanço patrimonial fosse um pouco mais claro, seria possível perceber o crescimento do passivo com a Caixa. Além disto, poderíamos notar que existia uma diferença entre o fluxo de caixa do governo e as receitas e despesas, conforme a competência.
O aumento da dívida, o descompasso entre superávit/déficit e fluxo de caixa, além da apuração mais rigorosa dos passivos atuariais futuros, a aproximação da contabilidade pública da contabilidade empresarial e outras nuances possíveis poderia certamente ajudar na percepção de que existiam problemas nas finanças públicas brasileiras.
É bem verdade que já se sabia dos problemas antes de 2015: os jornais já discutiam sobre o assunto, os especialistas tentavam compreender os números e as sutilezas da manipulação já tinham se manifestado. Surpresos ficaram aqueles que não conhecem as contas públicas; ou seja, a enorme parcela de brasileiros que não gosta de números, que foram ensinados na escola a odiar a contabilidade e são capazes de acreditar em tecnocratas com vocabulários difíceis.
Em suma, o regime de competência poderia ajudar. Mas sem uma melhoria na compreensibilidade das contas públicas nada disto seria suficiente. Isto estaria compreendido dentro do que Soll chama de boa contabilidade. E boa contabilidade é a chave da prosperidade.