A ascensão da Netflix e de outros canais de streaming levou à criação do verbo "maratonar". Isso significa passar horas diante de uma tela assistindo a um programa favorito. Ao contrário da televisão tradicional, que liberava as ficções em conta-gotas, os streamings muitas vezes entregam o produto de uma vez só. E as pessoas querem assistir aos episódios logo, para comentar com amigos e ver as reações na rede.
Há uma frase de um gestor da Netflix que resume um pouco isso: "o maior inimigo da empresa é o sono". Temos aqui a tradução, em outras palavras, do significado de maratonar. Mas será isso um problema?
Li recentemente um texto sobre o assunto no excelente The Conversation. E o autor, um historiador, lembra que a maratona não é algo novo. Trata-se de uma tradução de um desejo humano muito antigo de estar imerso em uma história. As narrativas orais estiveram muito presentes na evolução humana. O livro "Odisseia", atribuído a Homero, está baseado nessas narrativas, mas a tradição deve ser bem mais antiga.
A evolução tecnológica muda um pouco esse cenário. E falo aqui do livro, não da televisão. O livro traz a possibilidade de registrar de maneira mais precisa as narrativas e, a grande mudança, permite que muitas pessoas possam ter acesso a elas. A imprensa de Gutemberg trouxe leitores ávidos em todo o mundo, que devoravam os romances em público ou à luz de velas.
Já comentei aqui sobre o livro "O Infinito em um Junco", que traz, de maneira maravilhosa, a transformação da linguagem oral na escrita. Também nunca é demais lembrar que a revolução da contabilidade das partidas dobradas foi muito acelerada graças a um livro. E que Portugal, e o Brasil por consequência, ficou atrasado economicamente pelo fato de alguém ter escolhido o capítulo errado para verter na nossa língua.
O livro trouxe então uma efetiva maratona, que era muito inclusiva, já que as mulheres, veja que horror, adquiriram gosto em ler na cama, rindo alto de uma narrativa, emocionando-se com outras, adquirindo hábitos ofensivos. E muitas obras, como "Memórias de um Sargento de Milícias", foram lançadas em capítulos, a conta-gotas, nos jornais da época.
Mesmo com esta longa descrição, ainda assim, quando pensamos em maratonar, estamos associando à Netflix. Talvez a existência de um grande conteúdo, a concorrência entre os canais e a acessibilidade tornem o termo mais apropriado para ser usado nos nossos dias.
Voltando ao texto do The Conversation, o autor pergunta, no final, qual a razão de gostarmos tanto da maratona. Há razões químicas (liberação de dopamina, que está associada ao prazer e vício), emocionais (queremos saber como acaba) e, isto não é explorado no texto, queremos estar prontos para compartilhar a experiência com os amigos.
Há uma mudança sutil em relação ao passado. Nas palavras do texto:
"Hoje em dia, maratonar frequentemente vem acompanhado de sentimentos de culpa e improdutividade, refletindo uma mudança nos valores sociais em relação ao tempo de lazer. Em certos momentos do passado, o envolvimento prolongado com histórias seria visto por alguns grupos como uma atividade cultural valiosa, contribuindo para o enriquecimento pessoal e interação social."
Fechando,
"Talvez, ao reconhecer este precedente histórico, possamos apreciar nosso amor pela maratona e não nos sentir tão mal com isso."