Sobre o sigilo de cem anos, prática adotada pelo atual presidente da república, para impedir a divulgação de certas informações:
O cartão de vacinação de Bolsonaro foi colocado em sigilo, em meio à pandemia de covid-19 e no contexto de que o presidente questionava eficácia e segurança dos imunizantes;
O governo determinou sigilo de cem anos sobre informações dos crachás de acesso ao Palácio do Planalto emitidos em nome dos filhos Carlos Bolsonaro e Eduardo Bolsonaro;
A Receita Federal impôs sigilo de cem anos no processo que descreve a ação do órgão para tentar confirmar uma tese da defesa do senador Flávio Bolsonaro, filho do presidente, sobre a origem do caso das "rachadinhas";
O Exército impôs sigilo de cem anos no processo que apurou a ida do general da ativa e ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello a um ato no Rio de Janeiro com o presidente Jair Bolsonaro e apoiadores do governo.
Também há caso em que o governo tentou manter a informação secreta e depois mudou de ideia — como os dados sobre visitas ao Palácio do Planalto de pastores suspeitos de favorecer a liberação de verbas do Ministério da Educação para prefeitos aliados.
Reportagem do Estadão publicada em maio de 2022 mostrou que, de janeiro de 2019 a dezembro de 2021, durante o governo Bolsonaro, um a cada quatro pedidos de informação rejeitados tiveram como justificativa o sigilo da informação — a taxa é duas vezes a registrada na gestão da petista Dilma Rousseff e quatro pontos porcentuais maior do que a do governo Michel Temer (MDB), segundo a reportagem.
O que diz a lei sobre 'sigilo de cem anos' - O sigilo de no máximo cem anos está previsto na lei que acabou com o sigilo eterno de documentos oficiais — a Lei de Acesso à Informação (LAI). Ela foi sancionada em 2011 pela então presidente Dilma Rousseff — e foi assinada junto com a lei que criou a Comissão da Verdade.
No artigo 31, a lei prevê que informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem tenham acesso restrito pelo prazo de até cem anos.
Também está lá um trecho que busca conter o uso dessa medida: o texto diz que a restrição de acesso de "informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância".
A advogada Patrícia Sampaio, professora de Direito Administrativo da FGV Direito Rio, explica que essa previsão do sigilo de cem anos na LAI busca proteção à intimidade e à vida privada dos indivíduos, visto que o Estado tem acesso a muitos dados que são pessoais. Por exemplo: alguma doença que você prefere que seus familiares e empregadores não saibam que você tem.
"Agora nós também temos que entender que, quando um indivíduo resolve se lançar na arena pública — concorre a um cargo eletivo, toma posse no cargo eletivo —, até mesmo essa privacidade, essa intimidade, ela é, de certa forma, relativizada", diz. "Não é que ela deixe de existir — o indivíduo continua tendo direito à sua intimidade, vida privada. Mas na relação dele com as coisas públicas, com os recursos públicos, essa intimidade tem que ser relativizada em nome do controle social da atuação dos agentes públicos."
Sampaio resume: "Em um Estado de direito, a publicidade dos atos administrativos e dos representantes do povo são, em regra, públicos. A publicidade é a regra e o sigilo é a exceção", diz.
A professora e advogada lembra que a lei tem dez anos. "Precisamos cuidar para que ela não seja esquecida ou interpretada contrariamente ao seu objetivo".
A professora da Universidade de Brasília (UnB) Andréa Gonçalves — que é especialista em prestação de contas pelo setor público, com foco na área de saúde — afirma que o Brasil é "uma democracia muito jovem" e que, pouco a pouco, foram sendo tomadas medidas focadas em aumentar a transparência — é o caso da LAI, que ela considera "ganho enorme".
"A sociedade tem direito e tem que ter acesso às informações do Estado", defende Gonçalves.
No entanto, a professora da UnB diz que "muito do que a gente observa é ainda traço do patrimonialismo — 'sentei na cadeira e faço do jeito que entendo, do meu jeito'. Isso você observa em todas as áreas".
"Isso vai do nível mais baixo até o escalão mais alto. A gente está falando de informações no nível federal. Imagina lá na prefeitura das cidades menores, onde o prefeito entende que ele é dono da prefeitura e o recurso que foi ele foi atrás, ele gasta como ele quiser, e não vai disponibilizar essa informação."
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