25 março 2025
Jorge Luiz Hennemann - Contador da FEE
13 março 2025
Boa vontade dos clientes
Pedro Demo, das obras de metodologia, escreve com muita regularidade sobre muitas coisas. Em recente artigo, ele conta um pouco da história de Datini, um marco na contabilidade mundial:
Exemplo disso foi Francesco di Marco Datini, que virou comerciante bem-sucedido, com a história de suas aventuras fora da Itália (era de Prato), na Ilha Canária. O rei lá o convidou para jantar. Havia na mesa guardanapos e neles um taco do tamanho do braço, cuja finalidade era enigmática. Sentando-se à mesa, quando a comida foi posta, o odor atraiu ratos de todos os cantos; o taco era para os espantar. No dia seguinte, o comerciante trouxe do navio uma gata e, logo, ela matou 25 ratos e os outros fugiram. O rei ficou impressionado, enquanto Datini o presenteava com a gata. Ao deixar a ilha foi coberto de presentes, sobretudo joias, valendo 4 mil escudos. Voltou no ano seguinte, levando um gato doméstico – que lhe rendeu 6 mil escudos. Ficou rico (AR:L2870). Comentam AR que a história pode ser forjada, pois não há registro da viagem às Canárias. Datini nasceu de taberneiro pobre, em 1335. Com 13 anos, a Peste Negra varreu a Itália, e sua mãe, seu pai e seus dois irmãos morreram. Só ele e seu irmão Stefano sobreviveram, com pequena herança: uma casa, um pedaço de terra e 47 florins.
Um ano depois da morte do pai, Datini mudou-se para Florença, virou aprendiz de lojista e ouvia histórias de cidades prósperas de Avignon, no sul da França. Lá estava residindo o Papa (por disputa sucessória), e a presença papal agitava o mercado local, do qual comerciantes italianos se aproveitavam. Grande parte do comércio de luxo e serviços bancários eram de famílias italianas, vivendo em bairro exclusivo na cidade. Com 15 anos, Datini vendeu seu terreno em Prato e se mudou para lá. Em 1361, com 26 anos, era sócio de dois toscanos, Toro di Berto e Niccolò di Bernardo. Negociava armamentos para os dois lados do conflito. Em 1368, sua contabilidade registrava a venda de armas em 64 libras para Bernard du Guesclin, comandante militar francês. No mesmo ano, houve venda enorme de armas para a comuna de Fontes, para se proteger contra Guesclin. Em 1363, Datini teve a primeira loja, comprada por 941 florins, com outros 300 pagos pela "boa vontade dos clientes". Em 1367, renovou a parceira com Toro di Berto, investindo cada um 2,5 mil florins de ouro, com três lojas. Em 1376, comercializava sal e lançou operador de câmbio, incluindo comércio de prataria e obras de arte. Abiu taverna de vinho e um armarinho, e enviou funcionários para negociar em lugares mais distantes, como Nápoles. Sua principal loja em Avignon tinha cintos de prata florentina e anéis de casamento de ouro, peças de couro, selas e arreios de mula da Catalunha, utensílios domésticos de toda a Itália, lençóis de Gênova, fustão de Cremona, e zendado escarlate, tecido especial de Lucca. A loja em Florença surgiu como eixo movimentado de produtos manufaturados à época e tinha tecido de lã branco, azul ou cru; linhas de costura, cortinas de seda e anéis de cortina; toalhas de mesa, guardanapos e grandes toalhas de banho; baús pintados à mão e porta-joias usados como dote da noiva.
Voltando de Avignon em 1382, montou negócio em Prato e Florença com filiais em Pisa, Gênova, Barcelona, Valência e Ibiza. Com diferentes empórios moviam-se ferro, chumbo, alumínio, cativos e temperos da Romênia e do Mar Negro; lã inglesa de Southampton e Londres; trigo da Sardenha e da Sicília; couro de Túnis e Córdoba; seda de Veneza; uva passa e figos de Málaga; amêndoas e tâmaras de Valência; maçãs e sardinhas de Marselha; óleo de oliva de Gaeta; sal de Ibiza; lã espanhola de Maiorca; da Catalunha, laranjas, óleo de oliva e vinha. Documentos de negócio têm cartas em latim, francês, italiano, inglês, flamengo, catalão, provençal, grego, árabe e hebraico. De comerciante, passou a produzir tecidos em Florença, comprando lã inglesa e espanhola e exportando o tecido pronto. Para AR, Datini fez fortuna sem "nenhum conhecimento, conexões ou capital, e sem a vantagem de contatos, monopólios ou ajuda do governo, exceto pelo contexto institucional amplo criado pelas comunas italianas" (AR:L2909). Revelou mobilidade ascendente vertiginosa, algo temido pela elite tradicional ameaçada. Bispo Otto, tio de Barbarosa, criticava nos genoveses: "não desdenhavam de oferecer o cinto de cavaleiro ou títulos de distinção a jovens homens de status inferior e mesmo a trabalhadores de baixos ofícios manuais, que, em outros lugares, seriam barrados como a praga caso quisessem assumir atividades mais respeitáveis" (Ib.). Reclamava da erosão da hierarquia e normas, embora a corrosão desse sistema fosse fundamental para o desenvolvimento econômico, enquanto permitia que gente simples, mas com talento, chegassem ao topo.
O negrito é meu. Vocês sabem qual o termo que usamos hoje no lugar do negrito?
28 janeiro 2025
Auditoria no início do Século XX no Brasil
Do livro de Richard Brown, A History of Accounting and Accountants, de 1905:
Não existe uma associação organizada de contadores profissionais com reconhecimento oficial no Brasil.
O sistema adotado para a auditoria das contas de corporações e empresas públicas e privadas consiste em atribuir esse trabalho a determinados acionistas, que formam o Conselho Fiscal [em português] ou Comitê de Auditoria.
Na liquidação de massas falidas, o juiz nomeia administradores entre os credores, os quais são responsáveis pela administração da massa falida.
Sempre que são necessários os serviços de um perito para elaborar balanços ou demonstrações financeiras de empresas com ações na bolsa ou privadas, qualquer guarda-livros pode ser designado, desde que tenha a confiança dos administradores, administradores judiciais ou do juiz, conforme as circunstâncias do caso.
27 janeiro 2025
Análise Histórica da Santa Casa de Porto Alegre
Eis o resumo de uma pesquisa muito interessante:
Aspectos históricos relacionados à Ciência Contábil figuram como uma temática relevante para a compreensão da estrutura contábil de organizações na contemporaneidade. Desse modo, a pesquisa realizada teve como objetivo analisar os registros de receitas e despesas realizados pela Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre/RS durante o período do Império brasileiro (1822-1889) e identificar elementos das escolas contábeis nos referidos registros. Para tanto, empregou-se uma pesquisa qualitativa, descritiva e documental operacionalizada por meio de análises dos Relatórios da Provedoria que constam no arquivo do Centro Histórico-Cultural da Santa Casa (CHC). Os dados foram analisados a partir dos Balanços de Receitas e Despesas. Os resultados obtidos demonstraram que a receita “Aluguéis de Prédios” chegou a representar mais de 20% da fonte de receitas totais, sendo que visando maximizar a rentabilidade, foram comercializados bens imóveis para adquirir Apólices da dívida pública – cujo rendimento de juros era de 6% ao ano. Destacam-se ainda as receitas de “Legados”, “Contribuição Marítima”, “Jóias”, “Loterias” e Subvenção Provincial. No que tange às Despesas Administrativas, Exposto e Capela juntas absorvem 55% de todas as receitas. Desse modo, a pesquisa contribui no âmbito da Contabilidade Histórica para evidenciar como a Ciência Contábil era utilizada para controle e gestão do patrimônio, buscando a efetividade das atividades da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre/RS. Logo, torna-se possível compreender aspectos relacionados à estrutura funcional da organização que contribuíram para que esta mantivesse suas atividades ao longo do tempo. (Francisca Viviane dos Santos, SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE PORTO ALEGRE: UMA ANÁLISE HISTÓRICA A PARTIR DOS REGISTROS CONTÁBEIS DO PERÍODO IMPERIAL (1822-1889))
Um gráfico interessante é a evolução da receita:
Veja que o objetivo é traçar uma evolução de uma entidade do terceiro setor, no século XIX, e associar com uma das escolas do pensamento contábil:No que tange aos registros contábeis da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, identifica-se maior influência da Escola Controlista.
04 novembro 2024
Quem inventou as partidas dobradas? Parte 2
Na postagem anterior, mostramos que provavelmente nunca teremos uma resposta definitiva sobre quem inventou as partidas dobradas. Contudo, sabemos onde o método foi criado geograficamente. A seguir, o mapa com as principais localizações:
Vamos explorar cada um desses locais.
Veneza
Situada junto ao mar, Veneza experimentou um grande crescimento entre os séculos IX e XII. Foi um importante centro comercial, conectando a Europa Ocidental ao Império Bizantino e à Ásia. No final do século XIII, Veneza era a cidade mais próspera da Europa, com 36.000 marinheiros operando 3.300 navios. Logo após a invenção da imprensa, na Alemanha, Veneza adotou a tecnologia rapidamente e, em 1482, já era o principal centro de impressão do mundo, incluindo a criação dos primeiros livros de bolso. Não surpreende, então, que a Summa de Pacioli tenha sido publicada em Veneza. O declínio de Veneza começa no século XV, com a queda de Constantinopla e a abertura da rota comercial pelo Cabo da Boa Esperança, que acabou com seu monopólio no comércio com o Oriente.
Champanhe
Hoje, a cidade e a região são conhecidas pela bebida que leva seu nome. A partir de 1314, tornou-se parte da coroa francesa, estando localizada a 160 km de Paris. Uma das filiais da empresa comercial "Irmãos Fini" estava na região, e suas feiras eram bastante conhecidas. Champanhe era uma das regiões mais prósperas da França, sendo um ponto de encontro para o comércio entre o norte da Europa e o Mediterrâneo. No entanto, a região sofreu com a Guerra dos Cem Anos, com pilhagens, insegurança nas rotas, a peste negra e a incorporação à Coroa Francesa.
Nîmes
Após o declínio do Império Romano, Nîmes sofreu invasões muçulmanas. A partir de 752 d.C., a cidade teve um governo descentralizado e fragmentado, típico da Idade Média, mas acompanhando por um crescimento no comércio. Embora pequena em comparação com Veneza, Nîmes sediava a Giovanni Farolfi & Companhia, fundada por mercadores de Florença.
Gênova
No século XII, Gênova era uma potência comercial e militar. Aproveitando-se dos saques das cruzadas e do transporte de mercadorias entre o Oriente e a Europa, a cidade rivalizava com Veneza. Em meados do século XIII, Gênova atingiu seu auge, derrotando Veneza e Pisa. No entanto, a instabilidade política contribuiu para seu declínio. Nesse período, Gênova tinha cerca de 100 mil habitantes, sendo uma das maiores cidades da época, comparável a Veneza. Documentos de 1340 relatam o uso das partidas dobradas em Gênova, fazendo da cidade uma das candidatas ao título de berço da contabilidade.
Florença
Embora as partidas dobradas sejam comumente associadas a Veneza, é injusto ignorar o papel de Florença. A preservação de vários documentos da época ajudou a destacar a cidade italiana no desenvolvimento da contabilidade. Florença também sofreu com disputas internas e com a peste negra, mas isso não impediu seu crescimento, tornando-se uma das cidades mais poderosas e prósperas da Europa. Sua moeda, o fiorino d'oro (florim), foi introduzida em 1252 e desempenhou um papel importante no comércio. Muitos bancos florentinos tinham filiais em toda a Europa, e o florim tornou-se a moeda dominante no comércio europeu. Sabemos muito sobre Florença graças ao historiador Giovanni Villani (1276-1348), que registrou fatos importantes sobre a cidade. Por exemplo, em 1338 havia seis escolas primárias com 10 mil alunos, incluindo meninas, e quatro escolas secundárias com 600 alunos de ambos os sexos. Em 1349, Florença tinha 80 mil habitantes, dos quais 25 mil trabalhavam na indústria de lã. Conforme Fenny Smith relata no artigo The Influence of Amatino Manucci and Luca Pacioli, embora os primeiros registros comprovados de partidas dobradas sejam os de 1340, dos intendentes (massari) do município genovês, acredita-se que a técnica tenha se originado na Toscana, especialmente em Florença. Isso possivelmente se deve à maior quantidade de documentos disponíveis dessa região, em grande parte graças às transcrições de Arrigo Castellani, que preservou quase todos os textos florentinos até 1300, incluindo um vasto número de fragmentos de livros contábeis.
Salon
Por fim, temos Salon-de-Provence, ou simplesmente Salon, uma cidade que ficava na rota do comércio de sal e outras mercadorias, o que lhe deu o nome. A cidade é conhecida por ter abrigado Nostradamus em seus últimos anos de vida. Era uma cidade pequena, com no máximo 3 mil habitantes entre 1200 e 1400, mas tinha relevância mercantil. A Giovanni Farolfi & Companhia também tinha uma filial em Salon, onde negociava trigo, cevada, aveia, vinho, lã, tecidos, fios e materiais de tingimento. É em Salon que, talvez por um acaso do destino, encontramos um dos primeiros registros de partidas dobradas.
03 novembro 2024
Quem inventou as partidas dobradas?
Muitas pessoas acreditam, de forma errônea, que Pacioli inventou o método das partidas dobradas, enquanto outras pensam que ele o formalizou, tornando-se o primeiro a documentá-lo de maneira estruturada, ainda que não tenha sido o inventor. Abaixo, a resposta que recebi do ChatGPT à pergunta “quem inventou o método das partidas dobradas”:
> O método das partidas dobradas foi formalizado por Luca Pacioli, um frade e matemático italiano, em 1494, em sua obra *Summa de Arithmetica, Geometria, Proportioni et Proportionalità*. Embora Pacioli não tenha sido o inventor do método (há indícios de que comerciantes italianos da época já o utilizavam), ele foi o primeiro a documentá-lo de forma estruturada, o que ajudou a disseminá-lo e estabelecer os fundamentos da contabilidade moderna.
Na realidade, não sabemos quem foi o primeiro a documentar o método de maneira estruturada. Mesmo considerando um livro, precisaríamos corrigir a inteligência artificial novamente. Qual seria, então, o mérito de Pacioli? Ele foi o primeiro a publicar um livro impresso sobre o método. Atenção: Pacioli não escreveu o primeiro livro sobre o tema — este mérito cabe a Benedetto Cotrugli. No entanto, o livro de Cotrugli não foi impresso, o que fez com que sua contribuição se tornasse secundária na história contábil.
Mas, afinal, quem foi o primeiro a documentar o método? Essa é uma questão difícil de responder por várias razões. Em primeiro lugar, é necessário definir, de forma clara e precisa, o que é o método das partidas dobradas. Não basta considerar o primeiro registro de débito e crédito, pois o método vai além disso. Precisamos pensar em uma estrutura que inclua o conceito de entidade, um procedimento para o fechamento periódico das contas, um livro razão e um diário, entre outros aspectos, o que é bastante controverso.
O pesquisador Geoffrey Lee, em um artigo de 1977 para o The Accounting Historians Journal, propôs os seguintes critérios: a existência de uma entidade contábil que transacione com outros agentes econômicos; o conceito de oposição algébrica nas transações, como o aumento do estoque e a redução de caixa; o uso de uma unidade monetária única, com conversão de valores quando necessário, permitindo a soma dos valores; o conceito de patrimônio dos proprietários; a presença da equação contábil básica; o conceito de lucro ou prejuízo e sua relação com o patrimônio; e a definição de um período contábil para mensurar os resultados. Atendendo a esses critérios, podemos afirmar que o método das partidas dobradas está em uso.
Outro motivo que dificulta identificar o inventor do método é que provavelmente ele surgiu de forma gradual e colaborativa. Os diferentes aspectos listados por Lee podem ter surgido em diferentes lugares e negócios ao longo do tempo. Por exemplo, um manuscrito de 1211, preservado em uma biblioteca de Florença, contém alguns elementos do método, mas não todos.
É interessante notar como se dava o processo de “invenção” naquela época. Enquanto hoje um pesquisador busca fama e reconhecimento, as pessoas envolvidas no desenvolvimento das partidas dobradas focavam em fazer os negócios funcionarem, utilizando a técnica contábil. Se alguém aprimorava o método em Veneza, não publicava um texto sobre o assunto nem fazia uma apresentação em um evento; aplicava diretamente no negócio. Mesmo assim, havia comunicação entre comerciantes, e métodos melhores eram compartilhados. Intuímos que isso ocorria, mas os detalhes são desconhecidos. Possivelmente, algum conhecimento era transmitido na educação, como o uso dos números hindus.
Por fim, talvez a razão mais importante para a dificuldade em identificar o inventor seja a tecnologia da época. Os pergaminhos, caros e frequentemente reutilizados, eram raspados para novo uso, fazendo com que muitos documentos contábeis se perdessem ao longo do tempo. Além disso, a umidade, o fogo e outros fatores frequentemente destruíam esses documentos. Desde 1200 até o início do uso dessa documentação para fins de pesquisa passaram-se cerca de setecentos anos. Como destaca Fenny Smith em um artigo de 2008, muitos empreendimentos da época eram efêmeros. Em Veneza, por exemplo, sociedades eram formadas e dissolvidas após a conclusão dos negócios, enquanto em Florença as atividades comerciais tendiam a durar mais, o que ajuda a explicar por que sabemos mais sobre Florença.
Em resumo, não temos como afirmar com certeza quem inventou as partidas dobradas. Podemos, no entanto, especular que tenha sido uma construção coletiva de diversos comerciantes, unidos por um objetivo comum. Essa seria, portanto, a resposta para a pergunta: quem inventou as partidas dobradas?21 outubro 2024
Falência e a equação contábil
Da Província de São Paulo, 5 de fevereiro de 1880:
Na mesma página 2 da mesma edição:
Eis outro assunto próximo, agora da massa falida do negociante Capitão Antonio Manuel Moreira de Camargo, de 31 de maio de 1883, p. 2:
Há boas histórias contábeis nos documentos do passado.14 abril 2024
Aula de Comércio
Sobre a Aula de Comércio, curso instituído por Marquês de Pombal:
As disciplinas lecionadas eram segundo Gonçalves (2017, p.49): “ (1) a aritmética e as suas aplicações comerciais (pesos, medidas, câmbios, seguros, fretamentos, comissões); e (2) escrituração (contabilidade) pelo método da partida dobrada”.
Para se poder ingressar na Aula do Comércio os alunos deveriam ter no mínimo 14 anos, saber ler, escrever e contar, sendo que era dada preferência a filhos ou netos dos homens de negócio se estes estivessem em situações semelhantes aos demais (Rodrigues, et al., 2003). O número máximo de alunos que poderiam assistir às aulas era de vinte, contudo em alguns casos, era admissível a presença de mais trinta alunos dado que cada lente não deveria ter mais de cinquenta alunos (Gonçalves, 2011b)
A Aula primeiramente tinha uma duração de quatro horas, funcionando no período da manhã no Inverno (Outubro a Março) das oito horas até ao meio dia e no Verão (Abril a Setembro) das sete horas às onze horas, sendo que posteriormente a aula passou a funcionar de manhã e de tarde (Rodrigues, et al., 2003; Gonçalves, 2017b). A primeira parte da Aula seria para o lente fazer a revisão da matéria já dada e seguidamente continuava a lecionar matéria nova (Rodrigues, et al., 2003).
O primeiro professor de contabilidade seria
João Henrique de Sousa (1720-1788) era natural de Setúbal, tendo a sua educação entre os sete e dozes anos de idade ficado a cargo do francês Michel Leboutex (Rodrigues e Craig, 2010). Aos doze anos, após a morte do seu pai, foi trabalhar para uma casa comercial italiana em Lisboa, onde trabalhou durante nove anos, posteriormente João Henrique Sousa viajou pela Argentina e pelo Brasil, antes de regressar novamente a Portugal onde foi eleito para lente da Aula do Comércio de Lisboa, começando a lecionar a partir do dia 1 de Setembro de 1759 (Rodrigues e Craig, 2010; Gonçalves, 2017b). Contudo, devido às suas elevadas aptidões foi nomeado pelo Marquês de Pombal para escrivão do Real Erário Régio a 29 de Dezembro de 1761, tendo tomado posse a 11 Janeiro de 1762 concluindo-se que este não terá acabado o primeiro curso, consequentemente não terá ficado encarregue pelos respetivos exames (Gonçalves, 2017b).
Devido á saída de João Henrique de Sousa para o Erário Régio, foi nomeado a 16 de Janeiro de 1762 o suíço Alberto Jaquéri de Sales (1731-1791) para lente da Aula do Comércio (Rodrigues e Craig, 2010). Alberto Jaquéri de Sales nasceu em Champvent a 27 de Agosto de 1731, tendo posteriormente emigrado para Londres, ganhando aí a aptidão para negociar, tendo posteriormente seguido para Cádis onde trabalhou para a empresa de Robert Mayne (Rodrigues e Craig, 2010; Gonçalves, 2017b). Depois de viver e trabalhar em Cádis, Sales vem para Portugal possivelmente em 1755, naturalizando-se português em 1759, começando a dar aulas na Aula do Comércio em 1762 (...)
(Fonte: aqui)
Sobre a adoção tardia das partidas dobradas em Portugal e domínios
As partidas dobradas foi, historicamente, um método que só apareceu em Portugal e domínios muitos séculos depois da sua criação. Se considerarmos que o método foi criado antes de 1.300 em alguma cidade da atual Itália, o seu uso em Portugal aconteceu 434 anos depois, segundo o trecho a seguir:
No ano de 1734 ocorreu a inauguração da Companhia da Fábrica das Sedas, uma empresa de tecidos com a sua sede em Lisboa, tendo o francês Robert Godin criado duas petições, para conseguir a criação da Companhia (Carvalho, Cochicho, Rodrigues e Paixão, 2016). Esta foi a primeira organização a utilizar a contabilidade por partidas dobradas em Portugal no período de 1745-1747 (Carvalho et al., 2016), no qual o guarda-livros recebia na altura cinquenta mil reis por trimestre (Rodrigues, 2016).
No ano de 1755, através do alvará de 6 Junho 1755, que aprovou e confirmou os estatutos da Companhia, Marquês de Pombal funda a primeira companhia monopolista de comércio, a Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão, sendo esta composta por um provedor, oito deputados e um secretário. A Companhia era privilegiada pela exclusividade da navegação, comércio por grosso e de escravatura com as capitanias do Grão-Pará e Maranhão, tendo o período da exclusividade do comércio tido a duração de 20 anos (Dias, 1968). A prestação de contas era segundo o método por partidas dobradas, que estavam previstos nos estatutos da lei, imposta por Marques de Pombal (Gonçalves, 2017b), sendo o guarda-livros desta companhia um francês, que posteriormente veio a ensinar contabilidade por partidas dobradas aos indivíduos que o sucederam (Rodrigues e Gomes, 2002).
(...) No ano de 1759 fundou-se a Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba pela mão de Marquês de Pombal (Lima, 2011; Gonçalves, 2017b), onde a contabilidade por partidas dobradas era obrigatória (Gonçalves et al., 2013; Gonçalves, 2017b). A Companhia atuava principalmente na atividade açucareira, não sendo a sua sua única atividade, pois para estimular a produção açucareira a companhia envolveu-se no tráfico de escravos, deixando espelhado uma vergonha nacional pois promoviam a escravidão (Lima, 2011).
O atraso encontra justificativa na política dos reis portugueses, que controlavam a impressão dos livros e adotaram políticas retrogradas.
(Imagem: ChatGPT)
A citação é de um artigo publicado agora (Brazilian Journal of Business, Curitiba, v. 6, n. 1, p. 479-494, 2024) denominado "História da profissão contabilística em Portugal: o século XVIII", de Bruno Lobo e Miguel Gonçalves.
21 dezembro 2023
Importância da Aula de Comércio
Eis o resumo:
A determinação do Marquês de Pombal foi imprescindível para a inauguração da Aula do Comércio, em 1759, constituindo esta um marco na História da Contabilidade Portuguesa devido ao seu pioneirismo no ensino do método digráfico em Portugal. Em virtude da sua importância, o estudo deste estabelecimento de ensino público é o objectivo deste trabalho, mais concretamente a dissecação das razões e objectivos da sua criação, interligando estes com o ambiente sócio-económico da época de forma a tornar mais compreensível o contexto histórico que levou à sua fundação, bem como o aprofundamento de questões como as suas regras de funcionamento, os primeiros lentes, as disciplinas ali leccionadas ou a sua importância no desenvolvimento da Contabilidade em território português. Quanto a este último aspecto, iremos concluir que a Aula contribuiu para um melhor emprego da partida dobrada e para a sua divulgação em Portugal, sendo igualmente determinante para o surgimento de uma classe de contabilistas portugueses devidamente habilitados, acabando, desta forma, com o atraso existente em matéria de conhecimentos e técnicas comerciais.
Tudo leva a crer que Pombal conhecia as partidas dobradas. Mas já comentamos aqui do atraso de Portugal, onde o método apareceu somente 450 anos depois de seu aparecimento na Itália. Para as colônias, o atraso foi ainda maior, já que era proibida a imprensa e as escolas superiores.
Também é interessante notar que a adoção das partidas dobradas só ocorreu após a morte de João V, em 1750. E deixou um governo com sérios problemas financeiros, mesmo com a riqueza brasileira. O texto fala em
uma máquina administrativa totalmente inoperante; fraudes, usos e especulações de toda a espécie nas organizações dependentes do Estado; a estagnação da indústria em Portugal; e a decadência do comércio que, na sua maioria, estava em poder de mercadores estrangeiros (GOMES, 1999a, p. 550)
Eis outro trecho interessante do texto:
A afluência de matrículas foi progredindo até ao 5.º curso. Assim, enquanto no 2.º curso se matricularam 163 discípulos, no 5.º, iniciado em Abril de 1777, matricularam-se 307. A partir desta data o número de alunos matriculados começou a decair ligeiramente, até às Invasões Francesas, em 1807, durante as quais se verificou uma forte redução na frequência do curso, o que se justifica pelo receio por parte dos naturais das províncias de se deslocarem à capital e pela ausência de alunos brasileiros. Como exemplo podemos apontar o número de alunos que frequentavam a Aula em 1809: 74 aulistas.
Não fica claro se esta ausência ocorria já antes da invasão francesa. Mas é preciso destacar que ocorreu uma transferência da Aula para o Brasil.
Temos uma carência de estudos históricos de contabilidade no Brasil. Uma das questões pendentes é o uso das partidas dobradas no país na época da colônia. Aqui uma pista:
Para além destes exemplos, Oliveira (2009) acrescenta outro: a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Esta utilizava, desde o ano da sua criação – 1756 –, o método das partidas dobradas. Contudo, o mesmo autor também salienta o facto de o primeiro guarda-livros da Companhia, João Hecquenberg, pertencer a uma família alemã e de ter sido enviado para o Brasil para ter formação contabilística com o guarda-livros da Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão, que já conhecia e utilizava a método digráfico. De acrescentar, que este também não era português mas sim francês.
Pode ser que a Companhia Geral do Grão Pará e Maranhão seja pioneira. Em resumo:
Antes de finalizar temos de referir que tudo foi feito pelo Marquês de Pombal e pelo Rei D. José para defender a Aula do Comércio e os seus alunos. Nesta perspectiva, foram concedidas diversas regalias aos aulistas como a obrigação da contratação de pessoas formadas na Aula do Comércio para determinados cargos públicos; o estabelecimento dos ordenados dos Guarda-Livros diplomados; etc. Contudo, e a partir do momento em que as ideias mercantilistas deram lugar ao liberalismo, assistiu-se à lenta decadência desta escola até à sua extinção em 1844, altura que é integrada no Liceu Nacional de Lisboa.
O artigo foi publicado há mais de 10 anos e traz bons ensinamentos:
Revista Universo Contábil, ISSN 1809-3337 FURB, v. 7, n. 2, p. 97-113, abr./jun., 2011
Método da Carga e Descarga
Da Revista de Contabilidade da UFBA:
O método da carga e descarga, que predominou no período estudado, consistia no lançamento das operações da entidade, carregando-a quando esta contraía alguma obrigação e descarregando-a quando esta obrigação cessava. Para a sua realização recorria ao sistema de débitos e créditos, de forma similar ao método das partidas dobradas, com o diferencial de que não incorporava os conceitos de ativos e passivos, além de não levar em consideração as contas relativas ao imobilizado, ao capital e amortizações. A contabilização pelo método da carga e descarga estava mais voltado a prestação de contas por parte da administração, fazendo com que seja considerado, por alguns autores, como um sistema mais jurídico do que contábil (Carvalho, Cochicho, Rodrigues & Paixão, 2016; Borreguero, 2011).
As instituições católicas não eram obrigadas, tanto pelo Estado como pelas autoridades eclesiásticas, a adotar nenhum método de contabilização específico, de modo que cada instituição era livre para adotar o método que considerasse mais apropriado a sua realidade. A contabilização pelo método da carga e descarga continuou a ser adotada por ser mais simples e, por conseguinte, exigir menos conhecimento por parte dos escrituradores, ao passo que atendia o interesse destas instituições que utilizavam a contabilidade para prestação de contas e controle interno de suas atividades (Gracia, 2013).
(Vinícius da Costa Nagib de Carvalho, C., & Bonfim, M. P. (2023). A CONTABILIDADE NAS INSTITUIÇÕES CATÓLICAS NOS SÉCULOS XVII E XVIII. Revista De Contabilidade Da UFBA, 17(1), e2319.)
Não conhecia. Talvez o fato de ser mais jurídico do que contábil. Mas há um quadro revelador no texto:
A quantidade de instituições religiosas não é grande, mas as partidas dobradas não estão presentes em Portugal e colônicas. Apesar das instituições religiosas serem "transnacionais", prevalecia a realidade local, como o artigo destaca. No período analisado, partidas dobradas não era um método "conhecido" em Portugal e colônias. Somente em meados dos anos 1700 é que passa a ser algo divulgado para a elite da Academia de Comércio. Isso já foi bem comentado aqui no blog.30 novembro 2023
História da Riqueza do Brasil e a Contabilidade
É possível encontrar em algumas obras alguma notícia sobre a história da contabilidade no Brasil a partir do início da colonização do país por parte dos portugueses. Se de um lado isto significa deixar de lado contagem de patrimônio rudimentar dos povos que viviam no Brasil, por outro lado valoriza demais um período de marasmo no país. É sempre bom lembrar que em Portugal não tinha adotado as partidas dobradas, algo que só ocorreu em meados dos anos de 1700. O país prefere excluir o progresso e ignora a principal inovação ocorrida na Europa e já de conhecimento de comerciantes desde 1300.
Ao tentar buscar tirar a diferença entre a economia de Portugal e outros países da Europa, o Marquês de Pombal cria uma escola de negócios e com ela a necessidade de ensinar as partidas dobradas. Isso 450 anos depois do aparecimento das partidas dobradas. E é importante notar que o Brasil, apesar de ser a principal fonte de receita do reino, não tinha imprensa e nem universidade, ao contrário da América Espanhola. Ou seja, estamos no atraso total.
Sobre o fato do Brasil ser a fonte de riqueza de Portugal, veja o que diz Caldeira, Historia da Riqueza, p. 103:
No final do século XVII, o Brasil fornecia cerca de 60% da receita tributária de Portugal, enquanto as demais partes do império ultramarino (possessões africanas, com destaque para Angola, onde traficantes brasileiros pagavam impostos, além de uns poucos domínios asiáticos restantes) forneciam 20%. No total, 80% das receitas tributárias do império vinham das possessões e apenas 20% dos moradores metropolitanos. Naquilo que se refere às despesas, 75% delas eram realizadas no Reino e 25% no ultramar.
Outro dado interessante, do mesmo livro (p. 159)
Entre 1796 e 1807, as exportações brasileiras corresponderam a nada menos que 83,7% do total de todas as exportações coloniais para a metrópole.
Uma das condições necessárias para a adoção das partidas dobradas era a existência de pessoas alfabetizadas. O Brasil não tinha nenhuma tipografia autorizada - era na verdada proibido ter máquinas de impressão inventada por Gutemberg trezentos anos antes, e eram negados todos os pedidos de criação de faculdades no país. Livros, só impressos em Lisboa, com autorização dos censores. Apesar do crescimento econômico do país entre a descoberta e os anos de 1800, o que incluía um grande mercado interno, o atraso da metrópole teve influencia sobre o nosso país.
Parte da diferença é reduzida com a chegada de Dom João ao país. Ele trouxe a escola de negócios, chamada de Academia de Comércio, a imprensa, agora permitida, e profissionais contábeis. Com isso, podemos dizer que pela primeira vez o país tem uma contabilidade por partidas dobradas, mas talvez restrita a alguns poucos negócios, mas não ao governo. É preciso uma maior investigação aqui para saber o real grau de desenvolvimento da contabilidade da época.
Entre o governo de Dom João e de Dom Pedro I, a bagunça das finanças públicas brasileiras, decorrente da má gestão dos dois reis citados, impede um maior progresso dos negócios. O acordo que Pedro fez para acertar a independência do país incluía um empréstimo secreto, usado pelo próprio Pedro, para investir nos seus interesses políticos em Portugal. Pagamos caro para ficar livre dos portugueses e muito mais ainda para livrar de Pedro I. O imperador brasileiro fez um empréstimo de 3 milhões de libras esterlinas da época, que correspondia a dois terços das exportações do país ou 10% da economia, sendo que 600 mil ficou no Banco do Brasil e o restante foi usado no exército e missões diplomáticas na Europa.
A regência trouxe a primeira eleição do país, mas eram necessários acertos na estrutura que não foi obtido nem com os regentes, nem com o sucessor Pedro II. Merece destaque aqui o governo de Feijó, o primeiro governante eleito do nosso país. Feijó tinha boas qualidades e uma delas era o respeito ao legislativo, algo que não aconteceu com Pedro I e nem com Pedro II. Outra qualidade de Feijó foi sua gestão fiscal. Ele reduziu substancialmente o exército, dispensando 30 mil soldades, o que representava uma redução de gasto de 36% neste item. Cortou a emissão de moeda e vários gastos. Ele conseguiu a aprovação do código criminal e do código de processo, um avanço na justiça brasileira. Sua herança foi o equilíbrio das finanças públicas.
Apesar do Código Comercial, de leis decorrentes e alguns avanços nos negócios, o período do Império representou um tempo que deveríamos esquecer. Veja o caso da Lei 2711. Segundo Caldeira:
introduzia restrições para a formação de empresas - restrições tão severas que acabou sendo conhecida como "Lei dos Entraves"
De certa forma, este blog já dedicou bastante espaço para esse período, que teve a primeira obra publicada de contabilidade, a primeira associação de profissionais e normas bancárias. Mas a economia realmente não avançou, teve a invasão do Paraguai e a falência do Banco Souto.
Minha leitura atual, História da Riqueza, de Jorge Caldeira, e anterior, Adeus Senhor Portugal, revelam esse pano de fundo. Minha lembrança da história da contabilidade é tradicional, ensinada na escola. Minhas descobertas recentes mostram que o país merecia um destino melhor do que o julgo português. E que a vida o Império foi, antes de tudo, um atraso na vida econômica do Brasil. A derrubada de Pedro I, pelo legislativo, e de Pedro II, pelos militares, demorou demais.
No período do segundo império ocorreu um aumento na alfabetização da população, de 2% para 17%. Isso era pouco no comparativo com o mundo moderno, onde vários países já estavam próximos de alcançar a alfabetização da população adulta. A população saiu de 4,4 milhões de habitantes em 1819 para 14,3 milhões em 1890. A renda per capita saiu de 670 dólares, em 1820, para ridículos 704 dólares, em 1890. Compare isso com os Estados Unidos, que saiu de 1300, em 1820, para 4 mil, em 1900. Foi o século perdido:
o século XIX como um todo e o período imperial em particular, foi um período de estagnação da economia brasileira e, por outro lado, de aceleração da economia mundial. Foi, portanto, um período de acentuado atraso para o país na comparação com o mundo (Caldeira, p. 297)
20 novembro 2023
Invasão holandesa no Brasil e o resultado sustentável
A ideia de resultado sustentável é bastante coerente e relevante. Usualmente é importante saber se o desempenho de uma empresa irá persistir no tempo. Ou seja, se é possível assumir que para o futuro a empresa continuará mantendo a sua atual trajetória. Uma forma de obter este tipo de análise é eliminando do resultado da empresa tudo aquilo que não repetirá no futuro. Se a empresa obteve um lucro enorme com a venda de um prédio, o resultado da venda não deveria constar da análise que fazemos, sendo necessário retirar esse valor. Se a empresa teve um grave prejuízo por conta de um desastre ambiental, podemos assumir que esse resultado não irá repetir no futuro.
O conceito do resultado sustentável surgiu claramente quando eu li o capítulo 10, Governos da Holanda, do livro História da Riqueza no Brasil, de Jorge Caldeira. Vou fazer um breve resumo do capítulo do texto que trata da invasão holandesa no Brasil, entre 1630 a 1654. Antes disso, em 1624, uma esquadra dos Países Baixos invadiu e saqueou Salvador. Depois, invadiram Pernambuco e arredores, o que incluía Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.
Maurício de Nassau
A aventura dos holandeses foi realizada por uma empresa, a Companhia das Índias Ocidentais ou VOC. A VOC foi a primeira empresa de capital aberto do mundo. Isso significa dizer que seu resultado era divulgado para os acionistas. Ela foi fundada um pouco antes da invasão e seu modo de atuação era a pirataria e saque. Bom, oficialmente era o comércio, que incluía o açúcar, tabaco, especiarias, escravos e outros produtos. Mas o grande impulsionador das atividades da empresa foi a captura de um navio chamado Santa Catarina.Caldeira mostra que quando os holandeses chegaram no Nordeste, o saque foi a primeira atividade. Isso gerou receita para a empresa. Mas é uma receita não sustentável. É principio do saque a tomada da riqueza à força, deixando o antigo proprietário sem seu ativo. O problema é que os holandeses venceram a primeira batalha, ao dominar o Nordeste, mas sem permitir que isso gerasse um resultado sustentável. Nas palavras de Caldeira:
A vitória significava não apenas o fim das oportunidades fortuitas como a necessidade de reiniciar a produção que havia sido desarticulada.
Ou seja, para manter a extração de riqueza no Brasil, os holandeses deveriam fazer investimentos na produção de açúcar. Isso exige dinheiro e pessoas para produzir. A invasão derrubou a produção de açúcar, pois já existia, no Brasil, uma cadeia produtiva articulada e com um agravante em relação aos portugueses: eles precisaram montar um exército regular para defensa do novo território. Caldeira mostra que ao longo da história brasileira, os portugueses extraíram muito, em todos os sentidos, e investiram pouco na terra. Já os holandeses, diante da ameaça de perderem novamente sua conquista, tinham que manter uma segurança aqui.
Em outras palavras, a história dos holandeses do Brasil é uma história explicada pela contabilidade. De um lado, os holandeses, que inicialmente saquearam o Nordeste e para gerar receita futura precisavam investir, o que significa que precisavam de capital. Ao mesmo tempo, também tinha despesas enormes com a manutenção da nova terra. De outro lado, os portugueses, que durante sua gestão não fizeram grandes investimentos - os engenhos eram investimentos privados e a defesa da terra era fruto das pessoas do local e um pouco do exército lusitano. Ou seja, enquanto a DRE dos holandeses apresentou um resultado inicial extremamente positivo, oriundo dos saques, esse desempenho não era sustentável. Já a DRE dos portugueses sempre foi lucrativa, com baixo investimento do governo lusitano.
Sabemos como a história terminou.
26 outubro 2023
Partidas Dobradas em Portugal
Eis o resumo:
Objetivo: Identificar, apresentar e demonstrar, de forma inédita, o método contabilístico utilizado na Real Fábrica das Sedas, quando da sua instituição, em 1757. Metodologia: Qualitativa, com recurso a fontes primárias manuscritas e a fontes secundárias. Foram as fontes primárias que possibilitaram a demonstração de que a empresa adotou as partidas dobradas na sua contabilidade financeira. Resultados: O artigo expande as raízes do conhecimento contabilístico português, designadamente por contribuir para um melhor conhecimento sobre a Real Fábrica das Sedas e por apresentar como principal resultado a demonstração cabal de que foram as partidas dobradas o método de contabilidade implementado na sua contadoria em 1757, sob os auspícios do guarda–livros alemão Conrado Bartolomeu Riegge e, claro, do principal secretário de Estado de D. José I, Pombal. Originalidade: Este estudo é o primeiro trabalho a demonstrar na literatura, seja nacional, seja internacional, que a Real Fábrica das Sedas, aquando da sua refundação, em 1757, adotou como método de registo contabilístico na contabilidade financeira as partidas dobradas.
Portugal adotou de maneira tardia as partidas dobradas. O artigo informa que o método apareceu um pouco antes da academia do comércio, na Real Fábrica das Sedas, em 1757. Mas o pioneirismo se deve a um alemão.
Duarte C., Gonçalves M., Góis C. (2023). ‘Algo de novo no Reino de Portugal’:Identificação e apresentação, inéditas, do Método Contabilístico Adotado pela Real Fábrica das Sedas (1757). De Computis -Revista Española de Historia de la Contabilidad, 20 (2), 1 -28. ISSN: 1886-1881 -doi: http://dx.doi.org/10.26784/issn.1886-1881.20.1.8838.
Eis um destaque em nota de rodapé:
A expressão justo valor, muito em voga dado o atual contexto normativo regulatório internacional liderado pelo International Accounting Standards Board (IASB), constava na referida fonte primária ipsis verbis, à data de 13 de agosto de 1757. É interessante concluir que a dita expressão é utilizada há mais de 250 anos em Portugal.
25 setembro 2023
Barrême
Lendo o capítulo 7 de Free Market, de Jacob Soll, fiquei interessado na figura de François Barrême. Segundo Soll, o francês Barrême (foto) foi contratado por Colbert, outro personagem importante da história da contabilidade, para produzir manuais de contabilidade de partidas dobradas e obras relacionadas com o câmbio. O livro escrito por Barrême em 1672, denominado de "A Aritmética de Sir Barrême" ou "Barrême Universel", foi usado pelas escolas francesas. O livro foi usado como manual de contabilidade até o século XIX na França.
Segundo a Wikipedia (versão francesa), François ou François-Bertrand Barrême nasceu em Tarascon em 7 de julho de 1638 e faleceu em Paris em 1703. (Há uma pequena cidade na França com o nome de Barrême, mas não encontrei relação entre a cidade e François). Barrême é considerado um dos fundadores da contabilidade, além de ter sido um matemático. Ele era filho de um juiz, foi professor de matemática em Pézenas e trabalhou com comércio na Itália. Depois disto, foi morar em Paris, onde abriu uma escola de comércio, que também funcionava como escritório de contabilidade.
Em Paris conheceu Savary e Colbert. Este último era o poderoso ministro francês. Escreveu tabelas matemáticas na área financeira. A obra fez tanto sucesso que a língua francesa incorporou "barrême" no vocabulário como sinônimo de "tabela".
06 agosto 2023
Escrita e a Contabilidade
Do livro O Infinito em um Junco (p. 121):
Segundo as teorias mais recentes, a arte de escrever tem uma origem prática: as listas de propriedades. Essas teorias afirmam que nossos antepassados aprenderam o cálculo antes das letras. A escrita veio para resolver o problema de proprietários ricos e administradores palacianos, que precisavam lançar mão de anotações porque era difícil fazer a contabilidade de forma oral. A etapa de transcrever lendas e relatos viria depois. Nós somos seres econômicos e simbólicos: começamos escrevendo inventários e, mais tarde, invenções (primeiro as contas, depois os contos)
Foto: Sayla Brown
10 agosto 2022
História usando jornais
Este blog já postou vários textos usando os jornais, especialmente brasileiros e digitalizados da hemeroteca da Biblioteca Nacional. Muitos dos textos são reveladores sobre a história da contabilidade. Agora um texto do NBER discute sobre o uso desta base de dados. Apesar da ferramente ser valiosa, o texto reconhece algumas limitações.
Eis o abstract:
Digitized historical newspaper databases offer a valuable research tool. A rapidly expanding set of studies use these databases to address a wide range of topics. We review this literature and provide a toolkit for researchers interested in working with historical newspaper data. We provide a brief description of the evolution of historical newspapers, focusing on aspects that are likely to have implications for the design of empirical studies. We then review the main databases in use. We also discuss some key challenges in using these data, most importantly the fact that even the most extensive datasets contain only a selected sample of the universe of historical newspaper articles. We offer tools for evaluating the comprehensiveness of available newspaper datasets, show how to assess potential identification concerns, and suggest some solutions.27 fevereiro 2022
História da Contabilidade: Balanço da Estrada de Ferro Central do Brasil
O balanço, publicado no jornal A Cruz, edição 23, do Ano de 1943, refere-se ao exercício de 1942. Ou seja, foi publicado seis meses depois do fechamento do exercício. Fiz algumas anotações
(1) O balanço traz o que seria hoje o relatório da administração. E um conteúdo era a Análise do Balanço, com destaque para análise da liquidez e variação patrimonial positiva
(2) A ordem do ativo é inversa ao que temos hoje. Começa com os investimentos em maquinários e termina valores disponíveis e realizáveis. No final, valores de compensação.
(3) O termo do lado direito é denominado de passivo e começa com o "patrimônio", que corresponde ao atual PL. Somente depois temos "responsabilidades correntes", que corresponde ao passivo.
(4) Por último, e o mais interessante, o texto de abertura afirma que "pela primeira vez no Brasil, uma grande estrada de ferro apresenta o seu balanço geral do Ativo e Passivo rigorosamente de acordo com a Padronização das Contas das Estradas de Ferro, aprovadas pelo Ministro da Viação e Obras Públicas desde 1937". Parece um feito, mas foram cinco anos para implementação. Mas tal fato foi glorificado no texto. Logo a seguir:
Evidentemente, não se deve ver nisso nenhum vislumbre de vaidade de nossa parte; apenas nos moveu o desejo de sempre superarmos a nós mesmos, de modo a jamais desmerecermos da confiança que nos teem depositado o sr. presidente Getulio Vargas e o sr. ministro da Viação, general Mendonça Lima.
Por sinal, a foto - aparentemente jovem - do ministro está no balanço.
História da Contabilidade: Economia e o reconhecimento da profissão
Tudo começou com a necessidade de um empréstimo externo:
Em 1913, o governo federal necessitava obter um segundo funding loan, mas esbarrou nas exigências dos banqueiros europeus, de exame da escrita do Tesouro para apurar as garantias que poderiam obter. Segundo Lobo e Moraes Junior (1941), no entanto, a pobreza dos registros contábeis dificultou o andamento da negociação.
Para tentar resolver o problema foi criada uma Comissão de Partidas Dobradas.
A Comissão de Partidas Dobradas funcionou até 1918. Ela contou, entre seus membros, com funcionários do Tesouro Nacional, como João Ferreira de Moraes Junior e Ernesto Le Cesne, e com dois servidores emprestados do Tesouro de São Paulo, Francisco D’Áuria [foto] e Carlos Levy Magano. Carlos Cláudio da Silva havia sido incumbido pelo ministro da Fazenda Rivadávia Corrêa de ir a São Paulo estudar os procedimentos contábeis que, desde 1906, eram executados sob a direção de Carlos de Carvalho.
Segundo Azevedo e Pigatto (2020), a experiência paulista recebia influência teórica italiana e consistia na adoção da contabilidade dual, isto é, orçamentária e patrimonial.
Uma consequência deste fato foi o fortalecimento profissional:
A modernização da contabilidade do Tesouro Nacional aproximou as trajetórias de contadores do Rio de Janeiro e de São Paulo. Eles constituíram associações de classe, ampliaram os intercâmbios entre si, editaram revistas e apresentaram demandas por profissionalização basicamente em dois sentidos: regulamentação da formação dos profissionais de contabilidade e garantias de exercício profissional. As duas mais influentes associações contábeis da época [Instituto Brasileiro de Contabilidade e Instituto Brasileiro de Contadores Fiscais] e foram constituídas no bojo desse movimento.
Eis o resumo do texto:
RESUMO: Este texto discute como a inserção de um grupo de contadores oriundos do Rio de Janeiro e de São Paulo nos serviços contábeis federais entre 1914 e 1926 representou a abertura de um canal por meio do qual se aceleraram as demandas por reconhecimento da profissão contábil. A necessidade de reformar os serviços contábeis da União descortinou-se com a negociação do segundo funding loan em 1914. Os banqueiros ingleses solicitaram informações orçamentárias e patrimoniais, a fim de avaliar as garantias que poderiam obter para respaldar um empréstimo. A pobreza dos balanços existentes conduziu à formação da Comissão das Partidas Dobradas, que congregou contadores dos Tesouros Nacional e Paulista para atualizar os serviços de contabilidade da União. Esses contadores, nos anos 1920, colaboraram para a consolidação das instituições de contabilidade pública federais e para a política fiscal do presidente Arthur Bernardes. O presente texto explora como o envolvimento dos contadores paulistas e cariocas nos serviços contábeis federais, em tarefas instrumentais à busca por equilíbrio orçamentário, permitiu-lhes uma base a partir da qual apresentaram seus pleitos pelo reconhecimento da profissão de contador. Esse é um estudo qualitativo e baseado em fontes primárias.
PROFISSÃO CONTÁBIL E PODERES PÚBLICOS:CONTABILIDADE DO SETOR PÚBLICO EPROFISSIONALIZAÇÃO (1914-1926) - Adelino Martins em Pluralidade de Temas e Aportes Teórico-Metodológicos na Pesquisa em História 2
19 fevereiro 2022
História da contabilidade: formatura e gênero em meados do século XX
Uma fotografia, de 1950, mostra uma turma de formados em contabilidade:
A legenda, do periódico Careta (ano 1950 ed 2169, p. 25), fala em duas moças - embora seja possível notar três mulheres. Mas a maioria é de homens. É interessante que esta fotografia estava em um trecho do Careta chamado "Formatura", com diversas fotografias. Na formatura de engenheiros, 100% de homens. Medicina tinha algumas mulheres. E eis um comentário do texto sobre este fato:
Acho que o tempo deu uma bela resposta para o redator, não?Eis outra fotografia, do Instituto Fluminense de Contabilidade, em comemoração do "Dia do Contabilista" (Revista da semana, 1940, ed 18, 46)
(O "Fluminense" aqui corresponde ao antigo estado do Rio de Janeiro, cuja cidade do mesmo nome não fazia parte). As fotografias a seguir são no mesmo instituto, agora em uma homenagem a Valentim Bouças, em um banquete no Jockey Clube: