Tolos ou excessivamente espertos, sempre existiram os crentes no caráter da inflação. Uns viam um "caráter financeiro", outros um "caráter classista" e ao final do processo surgiram os sacerdotes do "caráter inercial". Diante disso, ficou famosa a penetrante observação feita pelo mestre Mario Henrique Simonsen:
- A inflação brasileira não tem nenhum caráter.
Não se tratava apenas de definir a criatura como macunaímica e peçonhenta, mas de estabelecer que a criatura tinha funcionalidade, pois havia quem lhe enxergasse caráter, mas que não era benigna nem era possível de se manter sob limites.
O desaparecimento da criatura em razão do Plano Real, que fará 20 anos em fevereiro, foi imensamente festejado mas, infelizmente, a criatura retornou, com a mesma falta de caráter, e novamente produzindo discórdia, desconforto e injustiça. Seu retorno foi a convite, a partir da invenção denominada "Nova Matriz Macroeconômica", uma criação da equipe econômica do governo.
Há os que enxergarão exagero nos veredictos acima. Para os que viveram a hiperinflação em particular, há dois sentimentos polares: o de que 5,91% ao ano não é nada, pois era a inflação de um fim de semana naqueles tempos malucos, e portanto não há razão para maiores ansiedades. No outro extremo, prevalece a angústia, pois o organismo econômico brasileiro livrou-se desse vício a muito custo, e pequenas dosagens da mesma droga podem produzir uma perigosa recaída.
É para se preocupar com 5,91% anuais, a inflação acumulada para 2013?
A primeira observação, quase um clichê, é que estamos tratando de fenômeno complexo que está muito longe de se resumir apenas a um número. Uma média pode resultar de extremos muito desagradáveis e assim ocultar mais do que revelar. É comum se usar a analogia médica ao comparar a inflação com a febre e tomar a temperatura desse organismo com um número livre de ambiguidades. Entretanto, como toda analogia, ao simplificar demais o assunto, pode levar a erro em muitos casos, como agora. De muitas maneiras a medição da inflação se parece muito mais com um exame de sangue, com seus inúmeros testes capturando diferentes fenômenos e revelando disfunções de órgãos específicos. Os diversos números desse tipo de exame não se "somam". Seu médico poderá dizer que o HDL está bom, mas não a tromboplastina e a testosterona. E que há um antígeno marcando números estranhos. Sem entender, e angustiado você pede uma nota de zero a dez. Dificilmente o médico dirá um 5,91 ou qualquer número, não é por aí.
Os 5,91% da inflação pelo IPCA-2013 resultam de uma inflação nos serviços pouco inferior a 10% ao ano e de um congelamento branco de tarifas públicas. Péssimas notícias. 10% é muito e o País sabe bem que o congelamento de preços significa encomendar inflação no futuro, com a inevitável arrumação desses preços, sempre de forma amplificada e com as piores repercussões.
O congelamento é propositalmente dissimulado por movimentos que produzem uma inflação de cerca de 1% ao ano no conjunto desses itens, criando uma "inflação reprimida" que, na verdade, equivale à tentativa de aprisionar a inflação na sala de estar, o pior lugar para essa criatura peçonhenta, que vai espalhando sua sujeira pela casa, grafitando as paredes, tirando as coisas de seus lugares e ampliando a confusão.
Por isso, é uma tolice apelar à "desindexação" para justificar esse congelamento. É visível que as autoridades não sabem o que é desindexação, do contrário aceitariam o que lhes pede a Petrobrás para os preços de derivados do petróleo. Qual a lógica de o preço da gasolina, eletricidade e passagem de ônibus não andarem (sobretudo quando todos possuem agendas ampliadas de investimento), a tabela do imposto de renda sofrer correção de 4,5% e o salário mínimo crescer 6,78%?
A indexação (a prática da correção monetária) é assunto muito complicado, e muitos economistas de alentada reputação já meteram os pés pelas mãos nesse assunto. A ligação entre inflação e indexação provoca confusões históricas, como a tese do "caráter inercial" que postulava que a inflação existia por que existiu ontem, ou que a causa da inflação era a correção monetária. Como acima argumentado, era um julgamento tolo, ou excessivamente malicioso, sobre o caráter da inflação.
Obviamente, os planos de estabilização baseados nessas teses insanas todos fracassaram de forma flagrante e humilhante. Mas nem por isso desapareceu a tese de que a indexação era a causa da inflação e não a consequência, tampouco a ideia que falsear a correção monetária serve para moderar a inflação.
Desindexação não é "congelamento", pelo contrário, é liberdade para o sistema de preços cumprir o seu papel de vibrar e orientar as decisões econômicas, ou seja, está mais para a livre contratação de indexação, sobretudo no setor privado.
Nos preços públicos, onde não pode haver a livre negociação, trata-se de equilíbrio econômico financeiro de contratos supervisionados pelo poder público e de honestidade na aferição dos índices. Ao fraquejar nesses princípios, as autoridades introduzem um veneno na economia, que apenas o exame mais detalhado do índice de inflação logra capturar.
Os efeitos do veneno já são muito presentes na corrente sanguínea e a conclusão do hemograma é muito simples: a "Nova Matriz" é um fiasco histórico. Com a política fiscal frouxa, as leis da economia, das quais, infelizmente, não é possível fugir, impõem ao governo a escolha entre mais inflação ou mais juros.
Os argentinos preferiram "nenhum dos dois", e apostaram que uma maquiagem muito pesada em todos os números poderia enganar as leis da economia. É como alterar os valores do exame de sangue, acreditando que isso vai confundir o médico e também as doenças. O fracasso dessa tolice tem sido exposto em cores cada vez piores a cada dia.
No Brasil, estamos utilizando maquiagem, sobretudo nos números fiscais, mas a escolha mais importante foi a de permitir que o Banco Central cumpra seu dever, e portanto, optamos pelo "mais juros". A antipatia pública se volta para a ortodoxia da Autoridade Monetária e assim os políticos responsáveis pela desordem fiscal se afastam das consequências de seus atos. Um clássico, um truque velho e sem nenhum caráter.
*Gustavo H.B. Franco é ex-presidente do Banco Central e sócio da Rio Bravo Investimentos.