Já mostramos neste blog que a história da evidenciação contábil no Brasil inicia-se logo após a chegada de Dom João VI ao Brasil. As primeiras entidades que divulgaram algumas das informações contábeis foram do que conhecemos hoje como Terceiro Setor: teatro, que recebia subsídio da sociedade sob a forma de loteria, hospital e biblioteca pública. As informações do setor público foram, durante muitas décadas, dados orçamentários e de execução financeira, geralmente sem a utilização do método das partidas dobradas. (1)
Mais de trinta anos depois da expulsão da família Real de Portugal iniciou-se de maneira tímida a divulgação de informações de empresas. Um dos marcos foi decorrente do Decreto 83, de 12 de outubro de 1839, assinado por Dom Pedro II. A partir deste decreto, assinou-se um acordo entre Manoel Antonio Galvao, então ministro de estado, e diretores da Companhia Brasileira de Paquetes de Vapor. O acordo regulava o transporte marítimo entre o Rio de Janeiro e a capital da Província do Pará.
Os navios da empresa tinham que passar pela Bahia, Maceió, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão e Pará, levando as correspondências do governo. O interessante é o item 11 do acordo, que afirmava que a empresa deveria mostrar, de cinco em cinco anos, a contabilidade para um representante do governo. A partir desta informação, o governo poderia ajustar o acordo:
A companhia fica obrigada a mostrar, dentro de quatro annos, contados do dia 12 de outubro do anno passado, ter cobrado dos seus socios todo o capital destinado a esta empreza; assim como apresentar, de cinco em cinco annos, toda sua escripturação á pessoa ou pessoas que o governo nomear para examinar, a fim de poder o mesmo governo com o necessário conhecimento diminuir a consignação dada pelo thesouro publico á dita companhia, se assim julgar conveniente. (2)
É importante destacar que o texto utiliza a palavra “examinar”. Podemos dizer que este talvez seja um dos documentos precursores da auditoria no Brasil. Pelo texto fica claro que também se trata de um dos primeiros atos de regulamentação das atividades econômicas onde o governo utilizava a contabilidade.
O termo “examinar” foi utilizado alguns meses antes da publicidade deste acordo. E aqui talvez tenhamos o primeiro caso documentado de auditoria no Brasil! Trata-se do Banco Commercial do Rio de Janeiro, que no mesmo ano de 1840 publicou o “Relatório da Commissão de Exame de Contas do Banco Commercial”. O relatório começa da seguinte forma:
“Hoje comparece perante esta assembléa geral a comissão nomeada na sessão do dia 10 do corrente mez de janeiro, a apresentar o relatorio de seus trabalhos, e cumprir com a missão de que é encarregada pelo artigo 30 dos estatutos do banco commercial, no exame e fiscalisação do estado do mesmo estabelecimento.” (3)
A seguir apresenta, em um parágrafo curto, um elogio ao estado da contabilidade, “organizada por um methodo claro, simples e preciso, ella é desempenhada com toda perfeição e pontualidade; apenas se percorre os olhos pelos livros logo se descobre, se percebe e se examina a mais complicada das operações do banco”. Temos aqui as características das informações qualitativas como representação fidedigna e tempestividade. Então a comissão informa que tomou por base o balanço, apresentado pela direção, conferiu os itens e encontrou “perfeita concordancia”. Ou seja, “A caixa patenteava o mesmo saldo que o balanço manifestava (...)”. A comissão também faz uma análise financeira, informando que as despesas são razoáveis. Afirma também que existe segurança física no estabelecimento.
É bem possível que existiram outros relatórios de “auditoria” anterior ao do Banco Commercial. Mas confesso que este foi o relato mais antigo que encontrei nas minhas pesquisas. Além disto, pelo fato do mesmo ser muito próximo a uma “auditoria externa”, não podemos deixar de destacar seu pioneirismo.
(1) Estas informações encontram-se dispersas em diversas postagens sobre este assunto que postamos no blog.
(2) Publicado no Chronica Maranhense, 7 de maio de 1840, ed. 234, p. 1. Grafia da época.
(3) O relato foi publicado no Diario do Rio de Janeiro, 27 de janeiro de 1840, ano xix, n 20, p. 3. É importante notar que o Banco Commercial tinha um ano de existência.