Os escândalos recém-revelados pela Operação Lava-Jato suscitaram
debates sobre temas tão diversos quanto interrelacionados. Aqui
refletimos sobre três: procedimentos licitatórios (bastante explorado
pelo relator da CPMI da Petrobras), governança de estatais (pouco
abordado) e compliance antitruste (completamente ausente).
Sobre licitações, o relator destacou que: 1 - a Constituição Federal e
a Lei de Licitações (8666/1993) criaram um mesmo regime licitatório
para a administração direta e indireta e as estatais, 2 - a Emenda
Constitucional 19/98 previu um regime específico para as estatais; 3 -
antes da dita emenda, a Lei do Petróleo (Lei 9478/1997) previu um
procedimento simplificado exclusivo para a Petrobras, regulamentado pelo
decreto 2475/1998 - o que gerou uma batalha jurídica, pois a EC 19/98
deveria ter sido regulamentada por uma lei para todas as estatais antes.
O relator propôs então um projeto de lei (PL) para regulamentar as
licitações das estatais adotando o RDC (regime diferenciado de
contratações públicas) não só com sua contratação integrada como também
com uma nova, a semi-integrada, para maior transparência e celeridade.
Programas de compliance seria um grande passo para a consolidação do antitruste no Brasil
A reforma da governança de estatais é tarefa urgente, mas o relatório
da CPMI é tímido nessa direção: o PL apenas cria regras para nomeação
do conselho de administração, garantindo participação dos acionistas
minoritários, empregados e membros da sociedade civil. Não menciona
nomeação de servidores. A partir das ideias discutidas na Jornada de
Estudos de Regulação UERJ-Ipea-FGV-ProReg 2014 e de nossos estudos,
propomos uma completa reforma na governança das estatais, não apenas a
extensão do RDC a elas (que, aliás, ainda não tem comprovação empírica
de seus resultados - o ganho é apenas teórico, com base na experiência
internacional).
O que recomendamos é a adesão às diretrizes da OCDE, das quais
destacamos: 1- a criação de um órgão ou comitê especializado de
governança nas propriedades do Estado, com amplas competências; 2-
nomeação dos membros do governo nos conselhos de administração segundo
critérios de mérito e capacitação técnica, fixação e acompanhamento de
metas de produtividade e rentabilidade; 3- separação entre as funções de
propriedade (a cargo do dito comitê), regulação setorial e
fiscalização/auditoria; 4- gestão diária das estatais autônoma e sem
envolvimento do governo; 5- total transparência aos acionistas (em
particular ao governo e seus órgãos de auditoria); 6- código de ética na
relação com os stakeholders, incluindo os fornecedores; 7- auditoria
externa independente segundo padrões internacionais, além da auditoria
governamental.
No quadro atual, as nomeações respondem apenas a critérios políticos e
ao loteamento partidário, ou visam complementar salários de ministros, e
não são conhecidas metas de produtividade e rentabilidade; a gestão
parece atender muito mais aos critérios políticos de ocasião. Também se
confunde Estado acionista com Estado regulador. Ademais, decisões sobre
parcerias entre estatais e empresas privadas são totalmente opacas,
gestadas ora nos ministérios, ora no Planalto, ora nas próprias
estatais, BNDES ou BNDES-Par; a lógica cartorial dessas parcerias não
respeita o ordenamento de mercado, que requer transparência na seleção
dos parceiros.
O que salta aos olhos, e que o PL da CPMIPETRO não resolve, é que as
empresas estatais continuam sendo tuteladas por um Estado-babá, tanto
nas licitações - a Lei foca no processo e não no resultado - como na
proteção de seu poder de mercado. Um RDC transparente apenas enquadra a
Petrobras de volta a este modelo de licitações tuteladas e não resolve o
problema das estatais. Por um lado, compras de estatais deveriam ter
maior flexibilidade e, por outro, seus gestores deveriam estar expostos a
mais competição e sujeitos à maior responsabilização diante do comitê
de governança, dos órgãos de fiscalização e auditoria e das autoridades
de regulação.
Em particular, recomendamos que 1- as modalidades de compras incluam
diálogos concorrenciais (usada para compras complexas na União
Europeia); 2- parcerias de desenvolvimento de produtos e inovações
possam ser negociadas com prazos compatíveis com a maturação dos
investimentos e seguindo protocolos transparentes e regulamentados de
antemão pelo Congresso; 3- estatais e órgãos de administração direta e
indireta desenvolvam uma ferramenta de certificação única para
padronizar e centralizar a habilitação dos fornecedores e seus
cadastros; 4- todo o processo de compras, incluindo levantamento de
requisitos, formatação do processo seletivo, pré-qualificação e gestão
contratual, seja transparente para os auditores, mas não necessariamente
para o grande público (que inclui concorrentes das estatais); 5- dos
fornecedores com vendas totais ao governo acima de um limiar (a serem
consolidadas por um sistema integrado de dados), seja exigida a adesão a
programas de compliance antitruste (que educam e monitoram internamente
os gerentes no respeito à concorrência no mercado), nos moldes do que
foi criado pela antiga Secretaria de Direito Econômico, e cuja retomada
pelo Cade é essencial.
Por fim, o formalismo das regras de licitação não é condição
necessária nem suficiente para prevenir cartéis. O sucesso das
auditorias externas e governamentais depende mais do emprego de filtros e
outros monitoramentos dos procedimentos de compras. Um cartel
bem-sucedido coordena seus lances para elevar o preço vencedor simulando
competição.
A firma compradora pode implantar mecanismos de detecção dessas
práticas - conhecidos como screening (triagem) - nos seus dados internos
antes da ação das auditorias. O Departamento de Justiça dos Estados
Unidos, por exemplo, documenta diversos padrões que constituem
comportamento suspeito, tais como lances idênticos, grande diferença
entre os lances vencedor e perdedores, ou queda de preços face à entrada
de nova firma na licitação. A introdução dos programas de compliance e a
rotinização desses "marcadores de colusão" nas auditorias seriam
grandes passos para a consolidação do antitruste no Brasil.
Eduardo P.S. Fiuza e Rafael Mourão são do Ipea e Lucia Helena Salgado é do Ipea e Uerj.
Fonte: Valor Econômico/Eduardo P.S. Fiuza, Rafael Mourão e Lucia H. Salgado
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14 janeiro 2015
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