Por Márcio Chaer e Leonardo Léllis
Consulto Jurídico, 20 de junho de 2014
Ao concluir a primeira grande radiografia da advocacia de Estado no Brasil, os editores deste site e da publicação não tiveram dúvida em cravar uma chamada ousada para a obra: “O Novo Quarto Poder”, é a manchete de capa do Anuário da Advocacia Pública do Brasil.
A pujança e a eficiência do braço jurídico da União, dos Estados e municípios, entretanto, é vista com reservas por um dos advogados que, em 57 anos de atuação, mais projeção alcançou na história do Brasil: Ives Gandra Martins. Para ele, o poder público não tem obrigações, só direitos. Situação inversa à dos cidadãos. O tributarista elogia a atuação dos advogados públicos que, segundo ele, fazem um bom trabalho, mas têm um cliente que está acostumado a desrespeitar os direitos do cidadão.
Ícone da defesa da livre iniciativa, defensor ferrenho do capitalismo e adversário feroz do esquerdismo em qualquer tonalidade, Ives Gandra surpreendeu a opinião pública ao criticar publicamente e com eloquência o ‘justiçamento’ dos acusados nomensalão — segundo ele, um conjunto de deliberações movidas e turbinadas pelo clamor público, sem nexo com a doutrina e a jurisprudência. Mas essa tangência eventual com o PT não passa de um ponto fora da curva no universo das ideias desse jurisconsulto.
Convidado a opinar sobre a assimetria nas relações entre o Estado e o cidadão, Ives castiga sem clemência a forma como o governo central exercita o poder. O advogado afirma que o país é tributado para pagar salários do funcionalismo e não para a manutenção do serviço público. O Judiciário, em grande parte, diz ele, se associa na empreitada de buscar receitas que mantenham a máquina burocrática.
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor analisa o atual nível das relações entre o Estado e o particular no Brasil?
Ives Gandra da Silva Martins — Nos Estados Unidos, o presidente Obama — segundo o Torquato Jardim, ex-ministro do TSE — tem 200 cargos em comissão. Outros dizem que um pouco mais. Todos os demais funcionários públicos federais são concursados. No Brasil, com um PIB sete vezes menor, a Presidente Dilma tem 22 mil comissionados. E também um alto índice de corrupção, concussão e peculato que se concentra basicamente entre os cargos em comissão, também chamados de “cargos de confiança”. Muitos dos que aparelham o Estado têm necessidade de viver das benesses que os cargos dão. Isso explica a carga enorme de desvios que a imprensa noticia diariamente. Um exemplo: todos os programas sociais do governo federal consomem R$ 60 bilhões da receita tributária federal, que está em torno de 1trilhão de reais. É o eleitor mais barato. Custa, pois, 6% da arrecadação federal — sendo que a arrecadação global, considerando estados e municípios, está se aproximando dos 2 trilhões de reais. Isso significa que grande parte dos nossos recursos vai para os detentores do poder. Haja vista o déficit da Previdência, sobrecarregado pelos múltiplos benefícios oferecidos ao funcionalismo. 24 milhões de aposentados do povo geram déficit inferior a R$ 50 bilhões, enquanto os do serviço público (em torno de um milhão de beneficiários) superam essa quantia. Os próprios investimentos públicos ficam abaixo dos R$ 100 bilhões. Todo o resto é sugado pela máquina. O governo francês reduziu o número de ministérios para 16. No Brasil são 39. Alguns ministros ficam sem despachar com a presidente da República por meses. Em outras palavras: os cidadãos trabalham para sustentar a burocracia, os detentores do poder, e não o Estado prestador de serviços mínimo. Decididamente, a burocracia brasileira não cabe dentro do PIB.
ConJur — Os direitos e obrigações do cidadão e do Estado são observados simetricamente no Brasil?
Ives Gandra — Num país em que se trabalha para sustentar os detentores do poder (carga tributária de 37% no Brasil, contra 31% no Japão e Estados Unidos; 25% na China e na Rússia) é evidente que os direitos dos cidadãos estão sendo pisoteados de forma fantasmagórica por parte do poder público, que é profundamente desleal em relação aos cidadãos. Temos a atuação judicial nas cobranças pretendidas e duvidosos créditos por penhoras on line; recusa de certidões negativas que impedem empresas de entrar em licitações; e privilégios de procuradores da Fazenda Nacional garantidos com honorários de sucumbência de 20% e que conseguem no Judiciário, quando o Poder Público perde, que os honorários sejam de apenas 1% — o que implode o principal princípio de uma democracia, que é o da igualdade. Para o poder público, vale o final do famoso livro de George Orwell, a Revolução dos Bichos, ou seja, todos são iguais perante a lei. Mas alguns são mais iguais que outros.
ConJur — Quais são os principais problemas que o senhor identifica?
Ives Gandra — Para sustentar o gigantismo da máquina burocrática, o governo não hesita em criar regras inescrupulosas para garantir receitas. O que lembra outro pensamento, este do jusfilósofo alemão Konrad Hesse: “A necessidade não conhece princípios”. E, no Brasil, não conhece porque o devedor do Estado é cobrado por todas as formas de coação. Nem sua dignidade é poupada, enquanto o Estado brasileiro é um notório caloteiro. Basta lembrar os precatórios e qualquer execução que tenha por vítima o contribuinte, em que todas as formas de expedientes são usadas por seus adversários. Nos meus 57 anos de exercício profissional, o Brasil se transformou numa república fiscal incomensuravelmente pior do que tínhamos nos tempos da ditadura, quando o contribuinte tinha muito mais direitos, nessa área, que hoje. Os magistrados eram mais independentes. A tal ponto que, quando decidem a favor do contribuinte, receia-se que sejam levantadas suspeitas sobre sua índole e autonomia. Maledicências oficiais que objetivam inibir as decisões contra o Erário. Se o Brasil não destruir a adiposidade malsã da máquina burocrática, ela matará o país, com esses fatores concorrentes que testemunhamos, como a alta da inflação, a queda do PIB, a balança comercial negativa, o balanço de pagamentos estourando, a elevação do risco Brasil e todos os indicadores que deram fundamento ao Plano Real, como o superávit primário, as metas de inflação e o câmbio flexível, que estão sendo projetados para o espaço.
Conjur — Diante desse cenário de abusos, haveria como se reexaminar o poder coercitivo do estado contra o cidadão, em matéria cível?
Ives Gandra — Eu tenho a impressão de que a única solução é o voto. Eleger governantes com outra mentalidade. E nós temos, no Brasil, uma tendência de entender que o estado pode tudo e deve fazer tudo. Os políticos entram com essa mentalidade. E o que nós temos visto é um crescimento monumental da máquina administrativa. Então, eu acho que a única revolução que podemos fazer é através do voto e do esclarecimento à população de que nós, escravos da gleba, estamos vivendo em pleno século XXI o que os escravos da gleba viviam na época medieval. Os nossos senhores feudais são os governantes, e nós somos apenas campo de manobra para eles fazerem com os nossos bens o que quiserem. E estamos em um caminho que é mais triste, de apoio permanente aos regimes bolivarianos, onde o cidadão vai perdendo completamente o seu direito de ser. Vê-se, em relação à Venezuela de hoje, à Bolívia, ao Equador, um apoio monumental da atual estrutura governamental, dos atuais detentores do poder. Dizem que o Paraguai é uma ditadura, porque dentro da Constituição só restou um presidente, que depois concorreu ao Senado sem nenhum problema, sem nenhum trauma. Em compensação, a presidente Dilma se deixa fotografar ao lado de Fidel Castro como se estivesse ao lado de um deus. Assassino notório, que matou 17 mil pessoas em paredão, sem julgamento. Uma inversão absoluta. Testemunhamos, gradativamente, uma redução dos direitos de cidadania. Isto, a meu ver, é o grande drama que vamos ter de enfrentar através do voto. É preciso esclarecer o povo, porque as migalhas dos programas sociais têm eleito os governos. E esses programas sociais, na verdade, mantêm, com algumas migalhas, um contingente de votos que permite a perpetuação no poder de pessoas que pensam mais na detenção do poder do que fazer do país um país moderno, competitivo, com condições de concorrência com outros BRICs e, evidentemente, com condições de concorrência com países desenvolvidos. Eu acho muito difícil essa mudança senão através do voto.
Conjur — Este governo tem defeitos próprios, como qualquer outro. Mas a hipertrofia do Estado e a assimetria na relação entre o particular e o Estado, é característica comum de todos os governos desde o tempo do Império, não é?
Ives Gandra — É como um câncer, que existe desde o Império, mas hoje estamos com metástase em todo o organismo social. Se compararmos a hipertrofia no atual governo, com situações similares no passado, vemos que os próprios militares poderiam ser considerados monges trapistas nesse departamento. Há cerca de 20 anos, a carga tributária era de 22%, 23%. É a carga que sustenta a administração pública. Estamos falando da carga tributária que existia em 1992, 1993, na gestão de Itamar Franco. Hoje estamos com uma carga de 37%. Os serviços públicos continuam, se comparado com de outros países, muito ruins. O que ainda funcionou foram os privatizados, rodovias etc.
Conjur — Voltando para o cenário da máquina judiciária. Há casos que chamam a atenção. Houve uma desapropriação de fazendeiros, na área onde foi construída Itaipu, para reforma agrária. Os donos das terras não foram indenizados. Posteriormente, os colonos da reforma agrária, que nem chegaram a plantar, foram desapropriados para criação da represa. Esses colonos foram indenizados. Como se passaram 30 ou 40 anos, o valor do crédito dos fazendeiros ficou enorme. O tamanho da cifra é motivo para não pagar?
Ives Gandra — A máquina só funciona contra o cidadão, porque temos um estado aético e caloteiro. É preciso entender isso para compreender a realidade brasileira. Os precatórios: quantas vezes eles mudaram a Constituição para continuar caloteiros? E quando cresce a dívida, fica mais evidente a vocação caloteira do nosso poder público, a vocação aética. Eles dizem: “Não, agora temos de cuidar do interesse público.” Para mim, interesse público não existe. Existe interesse dos detentores do poder. Interesse público é interesse da sociedade. Quem diz: o interesse individual não pode prevalecer sobre o interesse público, está mentindo. O interesse individual é o interesse da sociedade a quem o poder público deveria servir. Mas, na verdade, o poder público, quando fala em interesse público, ele quer dizer: “Pelo meu interesse de detentor do poder, de gastador da máquina burocrática, os valores muito grande nós não devemos pagar. E é o que está acontecendo com os precatórios. O próprio Supremo que decidiu a favor do cidadão com os precatórios teve que colocar “n” condições, e eles não conseguem executar de qualquer forma.
Conjur — E qual é a responsabilidade do Judiciário nesse contexto?
Ives Gandra — Eu ouvi de muitos agentes ligados aos defensores do poder público, quando se trata de questões de valor: “De onde é que saem seus recursos, senhores magistrados? Saem da nossa receita.” Há uma manifestação, na imprensa, de uma queridíssima amiga, por quem tenho uma profunda admiração, a ministra Ellen Grace, de que os ministros do STF mereciam aumento, porque tinham garantido uma receita da União como não havia antes. Declaração criticada pela OAB. Ora, a função do Supremo não é garantir receita, é fazer justiça. Então, na prática, esta mentalidade hoje é uma mentalidade não só do Executivo ou do Legislativo, que é um notório desperdiçador de recursos. Há procuradores da Fazenda Nacional que dizem: “Como é que se pode dar aumento de vencimento se as decisões forem contra o Fisco?” E quando procuradores da Fazenda Nacional são assessores de ministros nos tribunais. Quer dizer, eles são procuradores, vão para o tribunal e depois voltam a ser procuradores. Como aconteceu no caso de uma procuradora que era advogada da procuradoria, foi para a assessoria e decidiu no próprio caso em que ela era advogada.