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A ancoragem é usar um ponto de referência, que muitas vezes não tem relevância lógica, para a decisão de uma pessoa. É uma mensagem transmitida de forma escondida visando influenciar alguém. Por este motivo, dizemos que a ancoragem é uma mensagem subliminar. Um aspecto importante das pesquisas com ancoragem é que muitas vezes este ponto de referência pode não ter nenhuma relevância lógica para decisão, mas mesmo assim afeta nossas escolhas.
Vamos explicar este ponto lembrando de uma pesquisa que foi realizada há meio século por dois dos mais conhecidos cientistas da área comportamental, Tversky e Kahneman. Os dois prepararam uma pesquisa onde cada pessoa fazia um sorteio de um número entre 1 e 100. Logo após o sorteio, solicitava que respondesse a uma questão simples: qual a percentagem de países africanos na ONU? Esta é uma pergunta que uma pessoa típica não sabe a resposta precisa e muitas vezes arrisca um palpite.
Um aspecto importante da pesquisa é que as duas etapas não possuem nenhuma relação. O sorteio de um número não deveria afetar a resposta da segunda pergunta. São perguntas que os cientistas chamam de independentes. Há um aspecto importante na pesquisa realizada pelos autores: o sorteio foi manipulado para sair somente dois números, 10 ou 65 (1).
O grupo de pessoas que teve um sorteio com um número reduzido, de 10, respondeu, em termos medianos, que a participação dos países africanos na ONU era de 25%. O grupo que tirou no sorteio o número 65 teve uma resposta mediana de 45%, bem acima do primeiro grupo. A surpresa da pesquisa foi o fato de que o sorteio de um número, um evento que envolve “sorte ou azar”, acabou afetando a segunda parte da pesquisa, que não teria, a princípio, nenhuma relação.
As pessoas que participaram da pesquisa, diante da dificuldade de responder corretamente sobre os países africanos, usaram o número sorteado como ponto de referência, como âncora. A resposta correta, de 20%, não era conhecida dos participantes, mas na ausência do conhecimento, o número sorteado serviu como âncora. A ancoragem é exatamente tomar decisão basedo em referência, que muitas vezes não possuem uma relação racional com minha escolha.
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Outro exemplo bastante citado na literatura mostra este efeito em termos práticos. Para um grupo de respondentes foi solicitada a resposta da seguinte operação:
1 × 2 × 3 × 4 × 5 × 6 × 7 × 8
Para um outro grupo, a pergunta era a seguinte operação:
8 × 7 × 6 × 5 × 4 × 3 × 2 × 1
Observe que a primeira operação é uma multiplicação, que começa do número um e termina no número oito. A segunda operação começa com o número oito e termina no número um. Há uma propriedade da matemática que diz que a ordem não afeta os resultados. Assim, 3x2 é o mesmo que 2x3. Ou seja, o resultado das duas operações é o mesmo. Em termos mais avançados, ambas são o fatorial de 8, somente apresentados de forma diferente.
Se usarmos a calculadora será possível obter o resultado correto, ou 40.320. Mas a pesquisa solicitava um palpite do respondente. Sendo ambas as operações iguais, espera-se que o resultado seja idêntico para ambos os grupos.
A surpresa é que as pessoas tendiam a arriscar um número bem abaixo do resultado correto. Mas o mais surpreendente era que o primeiro grupo, cuja operação começava com o número um, arriscou um valor médio de 512, versus 2.250 do palpite do segundo grupo, onde a multiplicação iniciava pelo número oito (2).
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Um aspecto importante da ancoragem é que parece estar em todo lugar. Uma pesquisa publicada em 2001 usou a ideia da âncora em um julgamento. Em um caso, os juízes escutam o caso e no final o promotor pede ou uma sentença de 36 meses ou uma sentença de 12 meses. Para o primeiro caso, o resultado final foi uma pena de prisão de 8 meses a mais do que o segundo caso.
Em outro caso, solicitou-se escrever os últimos quatro dígitos do telefone de cada pessoa. Depois, foi perguntado se o número de médicos existente na cidade seria maior ou menor que este número. Já é possível prever que pelo conceito de ancoragem ocorreu uma influência na resposta obtida na pesquisa.
Este texto começa com a seguinte frase: Aproveite a promoção: de R$100 por R$60. Este é mais um exemplo de âncora. Se um produto custa R$60, o cliente não sabe se isto é bom ou não. Os cem reais do anúncio é a referência.
Um truque comum usado pelos corretores de imóveis é levar os potenciais clientes em imóveis caros. O cliente provavelmente não irá comprar o imóvel mais caro, mas forma, a partir daí, uma âncora (4). Depois disso, o corretor leva seu cliente para um imóvel mais barato, que ele deseja comercializar. Este truque também é usado pelo vendedor de automóveis ou no menu de um restaurante, que coloca em destaque alguns pratos mais caros, para formar a âncora.
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O que explica a ancoragem? Uma possível explicação é a chamada preguiça cognitiva. Quando somos perguntados sobre o número de países africanos na ONU, imaginamos que a resposta não seja relevante para nossa vida e pensamos uma resposta de forma rápida. A âncora ajuda a resolver um problema como este. Se isto for verdadeiro, deveria existir uma relação entre a ancoragem e o teste denominado CRT (5). Este teste foi criado para tentar medir o nível de preguiça cognitiva das pessoas.
Outra possível explicação é que em situações onde existe incerteza sobre o valor, um grande intervalo na resposta possível, a âncora é usada como um parâmetro inicial. Se não tenho ideia do número de países africanos da ONU, eu começo com a âncora próxima, no caso o número sorteado, e faço ajustes na minha possível resposta.
Obviamente é preciso estar atento, pois usar uma variável somente para ancorar minha resposta ou decisão pode ser perigoso e conduzir a decisões ruins. A oferta da promoção parece boa, pois estarei comprando um produto por sessenta reais que tem uma âncora de cem reais. Mas talvez esta âncora tenha sido manipulada.
A ancoragem funciona quando somos ignorantes do que está sendo solicitado. Mas pode ser poderosa em situações práticas. Uma pesquisa com carros usados mostrou a relação com a distância percorrida pelo veículo (6). Quanto mais rodado for o veículo, menor o seu preço de venda.
O gráfico abaixo mostra esta relação. Parece bem razoável isto. Mas é possível perceber que há um buraco na relação entre as variáveis quando a quantidade rodada aproxima-se do número exato múltiplo de dez mil.
É como se o automóvel que rodou 9.900 valesse bem mais que aquele que rodou 10.001. Uma possível explicação é a referência. O primeiro dígito parece ter muito mais influência sobre o valor do automóvel.
Como toda heurística, a ancoragem tem um lado prático, reduzindo nosso tempo para resolver problemas e tomar decisões. De uma forma geral, produz boas respostas em muitas situações, mas pode também ser inadequada em muitas decisões. Inicialmente sabemos que a ancoragem atua mais fortemente em quatro situações possíveis. Primeiro, quando existe um valor saliente, que se destaca dos demais. Segundo, quando temos pouco tempo para tomar uma decisão. Terceiro, quando temos preguiça mental para pensar um pouco mais sobre nossa resposta. Finalmente, quando estamos lidando com valores absolutos (7).
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No livro Rápido e Devagar, Kahneman apresenta o seguinte exemplo de ancoragem:
Ao anunciar um preço de promoção, mas limitando a quantidade comprada, a empresa entregou uma referência para os clientes: doze produtos é um número razoável. A média comprada foi de sete unidades. A mesma promoção, sem limite por pessoa, reduziu a quantidade comprada por cliente. A âncora de doze unidades foi poderosa o suficiente para alterar a decisão dos clientes.
O exemplo mostra que a ancoragem tem uma grande influência nas finanças, seja no mercado de capitais, na avaliação imobiliárias, no preço dos ativos, no leilão ou negociações ambíguas.
A literatura de finanças tem chamado a atenção para as operações de divisão de ações. Quando uma empresa faz este tipo de operação, uma ação com valor de $10, passa a ter uma correspondência com duas ações de R$5. O acionista não percebe nenhuma mudança na sua carteira. Entretanto, para um investidor, pode criar uma aparência de que a ação está com preço baixo. É uma oportunidade para aproveitar (8).
Uma pesquisa com corretores imobiliários levou-os a uma casa e solicitou sua avaliação. Para um grupo de corretores foi entregue um preço sugerido de $65.900; para um segundo grupo, o preço sugerido foi de 83.900, ou 18 mil a mais. Novamente a referência fez seus efeitos. O primeiro grupo teve uma avaliação média de $67.811 e o segundo grupo de 75.190 (9)
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Uma situação típica de ancoragem ocorre com um investidor que comprou a ação no passado. Se os preços caíram após a compra, a referência para o investidor será o preço passado de compra (10). Veja a figura a seguir:
Mesmo que tenha existido uma recuperação do mercado, há uma tendência do investidor manter a ação, até que exista uma recuperação do dinheiro investido. Se o investidor tivesse comprado a ação em outro ponto do tempo, haveria mais chance de venda logo após a recuperação do preço (gráfico a seguir).
Talvez a ideia da âncora fique mais clara quando lembramos do leilão. O leilão é uma forma de venda de um produto que pode ser usado para venda de obras de arte, arrecadação de fundos de uma paróquia ou venda de produtos apreendidos pelo governo.
Cada pessoa que participa de um leilão tem uma expectativa sobre o montante que poderia pagar pelo produto. Em muitos leilões, o processo é aberto com o leiloeiro - o responsável por conduzir o processo - anuncia o lance inicial. Este primeiro lance corresponde a uma âncora para os participantes do leilão.
O primeiro lance não pode ser muito elevado, pois retiraria a concorrência do processo. Mas não pode ter um valor muito baixo, já que isto tornaria o processo mais demorado e poderia indicar, aos participantes, que o bem é pior do que eles pensam.
Uma pesquisa realizada por quatro estudiosos da Universidade de Columbia mostrou que este preço inicial é relevante para o preço acordado entre as partes. De forma específica, estudou-se se o fato da oferta inicial ser um número exato ou for um número arredondado interfere no resultado final. A pesquisa concluiu que se a oferta inicial for um número preciso, do tipo $234, são âncoras mais potentes (11).
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Na medida que absorvemos o conceito de ancoragem, começamos a perceber suas implicações práticas e utilidade. O exemplo da caixinha de natal é resultado da experiência do autor e da percepção do conceito. Ao final do ano é bastante comum que um grupo de funcionários passe uma caixinha de Natal. Os moradores de um condomínio, os usuários do serviço ou clientes de um estabelecimento são convidados a participar. Um dos segredos de uma boa caixinha de Natal é o âncora.
No meu condomínio esta é uma prática comum. Os funcionários tinham o bom senso de solicitar a um morador mais bondoso que abrisse a lista da caixinha. O morador seria a âncora, afetando os demais na sua contribuição. Se a âncora fosse uma pessoa menos bondosa, isto afetaria o total arrecadado.
Sabendo disso, a escolha de quem seria o primeiro a colocar o nome da lista deve ser objeto de cuidado por parte dos funcionários.
Esta é uma situação similar àquela narrada por McRaney no seu livro Você não é tão esperto quanto pensa (12). A um grupo de voluntários foi perguntado se aceitariam o trabalho em um acampamento duas horas por semana, durante dois anos. A proposta parece que incomodou a este grupo e 100% responderam de forma negativa. Logo a seguir foi feita uma nova proposta: aceitariam ser voluntários uma única vez, por duas horas. Neste caso, metade das pessoas responderam de forma positiva.
A primeira proposta serviu como uma âncora para a segunda solicitação. Esta segunda solicitação pareceu razoável diante do pedido de ser voluntário semanalmente durante dois anos.
Para um outro grupo foi proposta a mesma alternativa do primeiro grupo, sem âncora. Em outras palavras, “você aceitaria ser voluntário uma única vez, por duas horas, em um período de dois anos?”. Sem ter um parâmetro, somente 17% responderam sim, um percentual bem inferior aos 50% obtido com a âncora.
Há outras situações relatadas do uso da ancoragem em decisões cotidianas, inclusive financeiras. A existência de uma referência ajuda a entender a razão pela qual pessoas mais velhas tendem a achar o preço do ingresso do cinema tão caro. Também é a razão por que os restaurantes mostram a fotografia de certos produtos, mas não de outros.
Entender a ancoragem pode nos dar uma vantagem em negociações. Quando existir uma transação em situação ambígua, use o conceito a seu favor e estabeleça a âncora antes que a outra parte o faça. Viu um produto que agrada, diga logo seu valor mínimo. Esta será a âncora para a negociação posterior.
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Em 2018, o bilionário Elon Musk colocou a seguinte mensagem na rede social: “estou considerando fechar o capital da Tesla por $420. Tenho financiamento.” A surpresa foi enorme, pois naquele momento a ação da empresa estava sendo negociada a 300 dólares. Nesta época, alguns analistas consideravam que o valor mais adequado para o preço da ação seria US$200 dólares (13).
Isto provocou um aumento no preço das ações. Posteriormente especulou-se que Musk realmente não tinha capital para comprar as ações que estavam na bolsa de valores da empresa Tesla. Especulou-se também que estava sob efeito do consumo de maconha. As especulações originaram-se de uma pretensa ancoragem no preço sugerido, de 420 dólares. Nos Estados Unidos, quatro e vinte é um sinônimo de consumo de maconha, já que este é o horário usual do recreio em algumas escolas.
Passados quatro anos, o mesmo empresário anuncia que irá adquirir as ações da empresa Twitter. Várias semanas depois do anúncio, o empresário informa sua proposta de preço de aquisição das ações: US$54,20.
1 Ao restringir os números sorteados, a análise dos resultados fica mais fácil. O importante é que temos um número baixo, o 10, e um número acima da média, o 65.
2 Há diversos livros que relatam este exemplo. Vide, por exemplo, Montier, James. Behavioural Investing. Wiley, 2007. O livro de Montier é um pouco desorganizado e até repetitivo. Mas vale a pena consultá-lo.
3 Englich, T. and Mussweiler, T. (2001) Sentencing under uncertainty: Anchoring effects in the courtroom, Journal of Applied Social Psychology, 31, 1535–1551. Citado pelo mesmo Montier.
4 Angner, Erik. A Course in Behavioral Economics. Palgrave, 2012. Este é um livro pequeno, mas bem interessante.
5 Ver Montier, capítulo 7, para uma discussão sobre o assunto.
6 Pesquisa de Lacetera, Pope e Sydnor citada em Ruggeri, Kai. Psychology and Behavioral Economics. Routledge, 2022.
7 Não há um consenso na literatura sobre os motivos que levam as pessoas a usar a ancoragem. O texto baseou-se em algumas das referências citadas aqui. Sobre a questão dos valores absolutos vide Pompian, Michael. Behavioral Finance and your Potfolio. Wiley, 2021.
8 Szyszka, Adam. Behavioral Finance and Capital Markets. Palgrave, 2013, p. 193.
9 Northcraft, G. B.; M. A. Neale, 1987, “Experts, amateurs and real estate: An anchoring-and-adjustment perspective on property pricing decisions,” Organizational Behavior and Human Decision Processes 39, 84–97. O número de pesquisas que já comprovaram o papel da âncora é substancial. Neste caso, os corretores poderiam ignorar o preço sugerido, mas o resultado mostra que eles não o fizeram.
10 Moosa, Imad; Vikash Ramiah - The Financial Consequences of Behavioural Biases (2017, Palgrave Macmillan).
11 A pesquisa também sugere que âncoras mais precisas tendem a fazer a negociação ser menos flexível. MASON, Malia F; LEE, Alice; WILEY, Elizabeth; AMES, Daniel. Precise offers are potente anchors: Conciliatory counteroffers and attributions of knowledge in negotiations. Esta pesquisa foi postada aqui em 2013.
12 McRaney (Você não é tão esperto quanto pensa. O autor baseia-se o exemplo que será apresentado a seguir em MASON, Malia F; LEE, Alice; WILEY, Elizabeth; AMES, Daniel. Precise offers are potente anchors: Conciliatory counteroffers and attributions of knowledge in negotiations.
13 Este caso está detalhado de forma mais extensa na postagem do blog Contabilidade Financeira: https://www.contabilidade-financeira.com/2018/08/tesla-twitter-e-divulgacao-de-fato.html