A Companhia de Comércio e Navegação do Rio Mucuri foi criada em 1849 pelos irmãos Theophilo Benedito Ottoni e Honorio Benedicto Ottoni. Foi uma das primeiras empresas a emitir ações de Sociedade Anônima no Brasil (1). Tinha por objetivo estabelecer uma ligação entre o Rio de Janeiro e Salvador com o vale do Mucuri. Para isto, a empresa abriria estradas, implantaria uma linha fluvial entre a região e o mar, através do rio Mucuri, e promoveria a colonização da região com imigrantes. A empresa tornou-se uma das primeiras concessões públicas, uma espécie de Parceria Público-Privada do império (2).
Concebida por Theophilo Ottoni (3), que posteriormente batizou uma das cidades surgidas a partir da criação da empresa, teve um história de controvérsias e polêmicas. Weder Ferreira da Silva, na dissertação de mestrado (4), faz um importante apanhado histórico sobre a empresa e o papel de Otoni no desenvolvimento da região do Mucuri. O estudo da empresa permite conhecer melhor como era a contabilidade das empresas na metade do século XIX. Envolve questões relacionadas com a concessão, mas também a encampação de empresa, incluindo avaliação de bens em situação de liquidação.
Esta postagem irá se concentrar no relatório preparado por um dos peritos, no caso Jose Candido Gomes, que analisou a situação da empresa (5), assim como a documentação contábil da mesma. Conforme explica Silva, na dissertação de mestrado, dois peritos fizeram uma análise da Mucuri. Gomes, denominado de comissário árbitro, foi indicado pelo ministro dos Negócios da Agricultura, e Ernesto Otoni, dos acionistas; existindo divergência, a mesma seria decidida pelo presidente da província de Minas Gerais.
A leitura do parecer de Gomes permite inferir alguns aspectos interessantes sobre a contabilidade da empresa. Destaco aqui os seguintes pontos:
1) A Mucuri utilizava o método das partidas dobradas (6). Naquela época, nem toda entidade usava o método, como é o caso da administração pública, onde era predominante as partidas simples. Apesar disto, a escrituração estava baseada no regime de caixa; assim, uma dívida não estava registrada no passivo da empresa, exceto se tivesse transitado pelo caixa da empresa.
2) Não existia a demonstração de lucros e perdas, a atual demonstração do resultado. Entretanto, a partir das contas do “balancete” é possível fazer uma análise do desempenho da empresa. O problema maior estava na qualidade dos números apurados (7);
3) Outro aspecto destacado no parecer de Gomes é que a grande maioria das despesas eram classificadas numa única conta, de “despesas gerais”, o que impedia uma análise mais detalhada do desempenho da empresa. Como a empresa tinha vários negócios, não era possível saber se eram lucrativos; pela análise, provavelmente nenhum deles era, incluindo o comércio, que representava uma pequena parte da receita.
4) Um auditor iria reprovar as contas da empresa, já que a maioria dos lançamentos não tinham os documentos comprobatórios (8). Num dos casos, a contabilidade registrava que o volume de documentos era muito grande e não tinha sido encaminhado, da região de Mucuri para o Rio de Janeiro, onde ficava a sede da empresa, por serem grandes. As cartas entre os funcionários também não eram suficientes para comprovar os lançamentos, já que muitos acertos eram feitos verbalmente. Num dos recibos, a letra do funcionário era, segundo Gomes, igual a do guarda-livros (9).
5) Entre os ativos da empresa existiam seres humanos (10). Na época a escravidão era legalizada no país e estas pessoas eram consideradas como bens da empresa. Há uma discussão sobre o quantitativo de escravos, a “baixa” daqueles que foram alforriados pelo gestor ou dos que morreram entre o balanço e o levantamento dos bens da empresa. E também a amortização dos seres humanos pela perda de capacidade de trabalho em razão da idade.
6) Apesar de não existir claramente o conceito de depreciação ou amortização, o mesmo estava indiretamente apresentado no documento redigido por Gomes (11). Este perito, ao comentar sobre o valor dos ativos, destaca a necessidade de subtrair um percentual pelo uso ou desgaste do mesmo.
7) Para finalizar, há uma discussão muito interessante sobre se uma determinada quantidade de terra deveria ser considerada como ativo da empresa (12). Gomes traça um histórico da lei que deu a concessão para a Mucuri. Na norma, a empresa poderia receber do império terras devolutas caso cumprisse uma série de requisitos. Para o perito, em alguns casos a empresa cumpriu o expresso na norma; em outros casos, isto não ocorreu. Assim, para Gomes, este último caso não daria direito, para a empresa, de reconhecer as terras como ativo, ao contrário do que afirmava o perito da empresa, Ernesto Ottoni. Este ponto me fez lembrar da discussão do Iasb sobre a necessidade do ativo estar dentro da lei ou não.
O caso da Mucuri é muito interessante por mostrar que situações históricas podem enriquecer nosso conhecimento sobre a contabilidade.
(1) Salomão Neto, Flávio Henrique. Companhia de Comércio e Navegação do Mucuri: uma concessão de serviço público como forma de desenvolvimento de uma Região.
(2) Idem.
(3) Vide verbete na Wikipedia
(3) Colonização, Política e Negócios: Teófilo Benedito Otoni e a trajetória da Companhia do Mucuri (1847-1863) defendida no programa de pós-graduação de história da UFOP em 2009. O trabalho de Silva representa uma análise muito interessante dos fatos relacionados com a Mucuri.
(5) O relato foi publicado parcialmente no jornal O Constitucional, em diversas edições (ano I, números 7 a 19, 23, 28 e 29, 1862)
(6) número 7 do O Constitucional.
(7) Idem.
(8) número 8 do O Constitucional
(9) A questão da letra encontra-se no número 9 do O Constitucional.
(10) Este aspecto pode ser encontrado no número 8 e no número 15 do O Constitucional.
(11) Isto está no número 13 e 17 do jornal.
(12) Número 12 do jornal
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