Introdução
A discussão apresentada a seguir começou com uma matéria publicada no jornal O Globo (publicado no blog Ideias Contábeis). O tema era uma previsão das profissões que irão sumir do mapa em 2025. Baseado numa análise realizada pela consultoria Ernst Young, o texto afirmava que diversas profissões ditas operacionais irão desaparecer em menos de dez anos, como operador de telemarketing, caixa e árbitros. Naturalmente que outras profissões irão surgir ou fortalecer, em especial aquelas vinculadas a “tecnologia de ponta”. Os jornalistas responsáveis pelo texto reproduziram um comentário de um funcionário da área de Gestão de Pessoas da EY; este afirmou que no futuro o importante seria “analisar e interpretar os dados disponíveis”. O texto originalmente publicado cita entre as profissões que serão extintas o contador.
As reclamações devem ter sido enormes. Afinal a EY é considerada, antes de tudo, uma empresa contábil. E ela informa que o contador será uma profissão extinta em menos de dez anos? Protestos com certeza.
O jornal, na sua versão online, divulga uma Nota da Redação onde informa que a EY enviou um comunicado afirmando que “traduziu” erroneamente o material usado em outro local. A EY verteu o termo “tax preparer” para “contador”.
O tax preparer é um profissional que hoje atua na extração de informações do sistema da empresa e insere em um sistema específico do Fisco. Acreditamos que esse processo será realizado automaticamente pelo Fisco no futuro.
O posicionamento da EY é que todas as profissões existentes passam hoje por um intenso processo de transformação, o que logicamente engloba a de Contador.
Reforçamos que a crença da empresa é que a contabilidade segue como promissora carreira.
É interessante notar que o jornal acatou as considerações da EY e substituiu na imagem disponibilizada na internet o termo “contador” por “elaborador de obrigações fiscais” (mas o leitor pode encontrar o texto original na internet em outros endereços onde foi reproduzido)
Um pouco do Contexto Histórico
A questão da evolução da tecnologia esteve associada ao trabalho do contador. A própria obra de Pacioli citada por muitos como um marco na contabilidade, não foi a primeira da área, como creem alguns. Mas adquiriu a relevância por ter sido a primeira impressa na máquina aperfeiçoada por Gutemberg.
A revolução industrial afetou muito mais os trabalhadores braçais do que os escritórios das empresas. Esta mudança permitiu a ascensão da contabilidade de custos e seus sistemas de alocação. No final do século XIX aparecem os primeiros produtos para tirar os borrões dos livros. Naqueles tempos, a contabilidade era feita à mão e cometer erro era o grande pesadelo do profissional. Um bom escriturário fazia seu trabalho cometendo poucos erros, evitando rasurar os lançamentos. Mesmo com o surgimento destes produtos, isto não eliminou a necessidade de o escriturário cometer poucos erros.
Até o surgimento do computador o trabalho contábil sofreu pouca influência da evolução tecnológica. As máquinas de datilografia e de somar ajudam, mas provavelmente tiveram pouco impacto, pelo menos inicialmente, na produtividade do escritório. O advento do computador muda este cenário. Esta máquina pode fazer trabalhos administrativos repetitivos de forma muito mais rápida que o ser humano. E um dos primeiros alvos do computador é exatamente o processamento de dados da folha de pagamento de uma empresa. O impacto desta mudança foi tão expressivo que a máquina desenvolvida pela IBM para fazer este trabalho, um computador chamado de Hollerich, deu origem ao termo holerite, ainda hoje empregado em alguns lugares do Brasil para designar o comprovante de pagamento do funcionário.
Nos anos oitenta do século passado chega ao Brasil os computadores pessoais. E junto com eles a promessa de acesso a programas de folha de pagamento, escrituração e similares. O desenvolvimento posterior mostra que a parte operacional da contabilidade, o lançamento do débito e crédito de operações corriqueiras e recorrentes, poderia ser feito pela máquina. Mais ainda, que a ligação existente entre o sistema de venda e o sistema contábil permite que uma operação de venda que passa pelo caixa de um supermercado seja automaticamente computada na contabilidade da empresa.
Mais recentemente a máquina está conquistando o espaço das operações não corriqueiras. A análise das demonstrações contábeis já pode ser feita por sistemas desenvolvidos previamente, alimentando as decisões de investimento no mercado de capitais ou a concessão de crédito para uma empresa. Estas operações consideradas nobres e analíticas e hoje são realizadas pela máquina. Não consigo listar nenhuma área da contabilidade onde o computador não tomou, em alguma medida, o lugar do ser humano.
Desde Pacioli até os dias de hoje, o desenvolvimento tecnológico parece que contribuiu mais para eliminar trabalhos corriqueiros do que foi uma ameaça à profissão.
Papel do Conselho
Voltamos a história. Tivemos no Brasil uma das primeiras associações de profissionais de contabilidade do mundo. Tratava-se de uma associação onde se reunia os guarda-livros. Na época do império este profissional era um dos poucos que tinha a possibilidade de votar.
A criação do Conselho Federal de Contabilidade, no entanto, só ocorreu ao final do governo Vargas . Dois fatos curiosos envolveram o CFC nos primeiros momentos. Primeiro, sua constituição foi uma tentativa de Vargas de obter apoio político, o que não foi o caso, já que dias depois da criação do CFC o presidente da república foi destituído. O segundo fato é que o dirigente do conselho era um funcionário do governo, mais precisamente do Ministério do Trabalho, e a sede ficava numa sala desta repartição.
Ao longo do tempo o CFC cresceu substancialmente e conseguiu criar uma reserva de mercado. Somente aqueles que possuem um registro são considerados aptos a fazer certas atividades. Anualmente estas pessoas pagam uma contribuição ao CFC, que exerce um papel de fiscalizar a profissão.
De certa forma a atuação do CFC lembra as antigas guildas. Os membros possuem exclusividade na execução de certas tarefas. Se por um lado as guildas foram destruídas pela revolução industrial, é inegável que elas contribuam para o desenvolvimento tecnológico e criação de um goodwill. Além disto, as guildas, ou algumas delas, dava proteção aos seus associados e tinha um papel relevante no controle da qualidade do serviço. Mas isto não impediu que fossem derrotadas pela revolução industrial.
Recentemente os leitores provavelmente acompanharam a discussão, nem sempre pacífica, entre os motoristas de taxi e os associados da empresa Uber. Os taxistas tinham entre o principal ativo a autorização dada pelo poder público para explorar o serviço de transporte individual de passageiro. A chegada do Uber mostrou que o serviço era caro e ineficiente e que o modelo deveria ser alterado. Uma licença de taxista tinha um valor substancial no mercado. Isto tudo foi alterado com a entrada do Uber. Hoje o principal requisito para exercer esta profissão é ter um automóvel em condições aceitáveis. Mas mesmo isto não é garantia de empregabilidade. O Uber investe pesadamente no automóvel sem motorista, assim como diversas outras empresas. Talvez nos próximos anos a profissão de motorista profissional não exista mais. Aqui um parêntese: a profissão de motorista não está listada naquelas que correm risco de deixar de existir em 2025.
Papel do Contador
No passado era fácil reconhecer o trabalho do contador. Era a pessoa que fazia os lançamentos de débito e crédito e posteriormente apurava o balanço. Nos dias atuais, 99,99% dos lançamentos contábeis são realizados por não contadores, sem que saibam o que estão fazendo. Conforme dizemos anteriormente, um funcionário do supermercado, quando registra as compras, está alimentando o sistema contábil, creditando receita e debitando cartão de débito. Fechar balanços é algo que fazemos mandando um comando para o sistema contábil.
Alguns acreditam que o contador seja o profissional responsável pelas informações de uma empresa. Mas o antigo bibliotecário já assumiu o papel de cientista da informação. Outros consideram que cabe ao contador transformar dados em informação, mas isto também é feito pelo cientista da computação, entre outros profissionais. E ainda podemos encontrar espaço de intersecção entre o trabalho do contador e do estatístico, do economista, do administrador e assim por diante. Talvez a fronteira entre os trabalhos do contador e do não contador nunca tenham sido claras, mas com certeza nos dias atuais é muito mais difícil delimitar esta fronteira.
Para sociedade percepção da função do contador está baseada nos estereótipos. O contador é aquele sujeito que prepara as declarações do imposto de renda, que assina os balanços, que é responsável pelas demonstrações contábeis e auditoria. Mas talvez isto não seja o que o contador faz. Baseado nestas reflexões, se alguém me perguntar qual o papel do contador honestamente terei dificuldade de responder.
A questão da previsão
Voltamos para o início da discussão. Tudo começou com uma previsão das profissões que não terão espaço no futuro. Um aspecto crucial é que se trata do futuro. E temos inúmeros exemplos de como é difícil fazer previsões acertadas. Apesar da existência de Julio Verne, que anteviu a viagem a lua, o submarino e outros avanços, geralmente as pessoas erram muito ao fazer previsões. Tetlock, no seu livro Superprevisores, mostra como existem charlatães nesta área (não estou afirmando que a EY esteja nesta lista).
A incerteza é muito grande e mesmo dizer que os preparadores de formulários de imposto de renda perderão seu cargo é muito arriscado. A perspectiva para a EY é que o governo irá fazer isto para o contribuinte. Duas observações precisam ser feitas aqui: a previsão foi realizada em outros país, onde esta possibilidade talvez esteja mais perto de ser realizada; e o estudioso superestimou a capacidade do governo em desenvolver soluções amigáveis para a sociedade.
Pense o seguinte: você poderia inferir há dez anos que a profissão de taxista estaria ameaça em 2016. Mas será que realmente que esta profissão corre o risco de acabar? Ou simplesmente haverá uma transformação, onde a licença do governo deixará de ser relevante?
Um aspecto que pode contribuir com a discussão é que geralmente as previsões mais “charmosas” são aquelas mais “radicais”. Fazer uma previsão de que os automóveis não precisarão de motoristas em dez anos é muito mais impactante do que afirmar que o sistema de direção será misto, sendo que algumas tarefas serão realizadas pelo computador e outras pelo ser humano. Provavelmente a segunda previsão está mais próxima do que irá ocorrer. Mas anunciar a chegada do automóvel sem motorista promove as ações das empresas de tecnologia e do setor de automóveis, além de ajudar a vender consultorias. Ou melhor, soluções inteligentes para a moderna empresa.
De igual modo, afirmar que uma profissão será extinta traz muito mais destaque do que prever que haverá uma redução nos postos de trabalho em razão da automação.
O Efeito incerto da automação
Um problema adicional na discussão é que o efeito da automação não é tão linear quanto gostaríamos que fosse. Talvez o melhor seria olhar para o passado para tentar entender o que esperamos nos próximos anos.
As máquinas da revolução industrial não eliminaram os trabalhadores braçais, mas modificaram a forma do trabalho e o tipo de especialidade. O computador não tirou o trabalho do contador, mas evitou que ele tivesse que gastar horas fechando o balanço.
Bessan fez uma análise interessante entre as máquinas de atendimento dos bancos e o número de empregados. Na década de noventa o número destas máquinas, denominadas de ATMs, cresceu exponencialmente. A reação esperada seria uma redução drástica no número de empregos. De fato, isto ocorreu num primeiro momento. Mas na década seguinte o quantitativo de trabalhadores aumentou. Segundo Bessan, as máquinas permitiram a redução no custo dos bancos, permitindo que estas empresas aumentassem seu leque de produtos e serviços, o que compensou a perda inicial de empregos. Bessan mostra que a questão tem muito mais a ver com elasticidade, um conceito básico da economia, do que com bola de cristal.
Baseado nisto é possível afirmar que as profissões que usam o computador tendem a ter um crescimento maior. Assim, não é a máquina que substitui o homem, mas o homem que usa a máquina que substitui aquele que não usa. Ou seja, o designer gráfico está substituindo o tipógrafo, na comparação de Bessan.
Ernst Young
A EY é uma das maiores empresas de contabilidade do mundo. Além de prestar este tipo de serviço, a empresa faz também consultoria. Lançar previsões pode ser interessante para a empresa, pois passaria a ser percebida como uma “bola de cristal”. Num mundo com tantas incertezas, saber que é possível contratar uma empresa capaz de prever o que irá ocorrer é um conforto. As empresas de consultoria possuem este papel.
Ao fazer essas projeções, a EY abre o espaço no mundo de negócios como sendo a grande especialista nas transformações no ambiente de trabalho. O problema é que a empresa ainda obtém uma grande parte dos seus lucros na contabilidade. Afirmar que a profissão pode ser extinta atiçou os brilhos cartoriais e trouxe desconforto para a empresa que ainda necessita do apoio institucional da classe contábil.
Mas o engano da EY pode ser importante já que traz reflexões para aqueles que não querem somente defender seu território ou o sistema de registro profissional. Isto lembra uma história antiga: os fabricantes de vela resolveram protestar contra uma ameaça aos seus negócios, que poderia levar a falência as indústrias e gerar desemprego. Pediam proteção ao governo para defender a indústria e o trabalho contra o sol, que impedia que as pessoas utilizassem velas 24 horas por dia.
Conclusão
Tenho dúvidas se a discussão criada a partir do texto do Globo seja relevante. Para os “fabricantes de velas” soltar uma nota de repúdio ou solicitar correções faz parte do seu papel. Mas o sol continuará no firmamento. A tecnologia está colocada como um instrumento. Saber tirar proveito dela para melhorar o trabalho não depende de notas de protestos, previsões, cartórios, desculpas ou anuidades. Cabe a cada profissional saber interagir com a condição posta pela automação. E adaptar-se aos novos tempos.
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