É muito comum as pessoas pensarem na contabilidade como algo frio, exato e imparcial. Entretanto, trata-se de uma ciência social, refletindo as características do ambiente onde ocorre. Percebemos bem este ponto ao analisar a história da contabilidade em diversos aspectos: na utilização de tecnologia, nos termos empregados, nos conceitos dos “mestres” entre outros.
Nas últimas postagens estamos concentrados em estudar os anos de 1830 da história da contabilidade no Brasil. E vamos usar um recém-conhecido nosso, Burnier, um nome que ficou um pouco esquecido na história da contabilidade, mas que foi resgatado por nossas pesquisas. Para mostrar como a contabilidade reflete seu tempo, título desta postagem, vamos usar um pequeno texto escrito por Burnier para O Despertador, em 29 de março de 1838 (edição 3, p 2-3). Neste texto Burnier dirige-se ao Caixeiro, uma profissão que seria a “porta mais acessível e mais comum por onde se entra para a profissão comercial” (1). Além disto, como o comércio daquela época era “pequeno” em relação aos dias atuais, provavelmente o caixeiro fazia outras funções, inclusive a escrituração.
Burnier afirma que com os conhecimentos adquiridos pelo caixeiro e o acúmulo de capital, o caixeiro poderá, no futuro, “negociar por sua conta”. Para isto considera cinco condições essenciais para que o “caixeiro possa chegar a negociante”. A primeira é “conhecimentos para exercer bem o gênero de comércio em que se ocupa”. Este conhecimento, Burnier dividiu em essenciais e acidentais, uteis ou auxiliares. Entre os conhecimentos essenciais temos a língua materna, escrituração e contabilidade, noções especiais do negócio, modo de negociar legitimamente e noções do sistema monetário e do câmbio.
A segunda condição é a diligência e cuidado no serviço e esta qualidade seria mais proveitosa para o caixeiro do que para o dono do comércio. Conseguir esta condição pode significar, em outras palavras, obter um bom nome na praça.
A terceira condição talvez seja polêmica nos dias de hoje: “fidelidade para com o amo”. Segundo Burnier, “é admirável a harmonia que existe entre os interesses do amo e do caixeiro; se a fidelidade preserva o amo de grandes danos e lhe dá a segurança de sua propriedade, dá também ao caixeiro a certeza de sua ocupação, melhoramento progressivo de condição, meios pecuniários, honra, estima pública e todas as facilidades de um estabelecimento independente e próspero”. (2) Para explicar melhor este ponto, Burnier usa uma analogia: “a honra do homem nesta parte é tão delicada como a da donzela; e a violação dessa honra tem nele as mesmas consequências: uma vez postergado esse preceito, as reincidências são quase inevitáveis; a pureza do primeiro estado nunca mais volta; a progressão para o total abandono do pejo e dos sentimentos da virtude é quase infalível”.
A quarta condição é a “economia no emprego de suas soldadas”. Soldada corresponde ao salário do caixeiro. Para que o caixeiro torne-se negociante é necessário que ele faça poupança do seu salário, formando um capital, até se estabelecer com independência.
A quinta condição também seria polêmica nos dias atuais: “o caixeiro deve ter docilidade ou submissão: sem submissão as ordens do amo, não poderá ganhar sua afeição, nem do público comercial; antes, atrairá contra si indisposição geral, será forçado a mudar de casa [mudar de emprego] sucessivamente e sempre com descrédito e piorando de fortuna; será mesmo difícil e muitas vezes impossível encontrar novos arranjos, vendo-se abandonado e reduzido a miséria e a todas as suas consequências.”(Itálico no original)
(1) Ao contrário das postagens tradicionais, fizemos uma modernização no português de Burnier para tornar a leitura mais agradável.
(2) Observe o leitor que esta condição é contrária a Agency Theory, mas isto é outro assunto. Devemos lembrar aqui que as cidades eram “pequenas” e a “fama” de um profissão era um bem valioso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário