Roberto Macedo *
O Estado de S. Paulo, 4/12/2014
Thomas Piketty é um economista
francês famoso internacionalmente após publicar, em 2013, o livro O
Capital no Século XXI, um dos mais vendidos em vários países. Já existe
também em português (Ed. Intrínseca, 2014).
Tem 43 anos e, aos
22, já era doutor em Economia. No biênio seguinte ensinou no famoso
Massachusetts Institute of Technology, dos EUA. Tem outros livros,
muitos artigos em boas revistas acadêmicas e recebeu premiações
importantes. Convence, portanto, como personagem.
Na semana
passada conheci-o na Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade da USP. Almoçou com professores e deu palestra em inglês
para um auditório cheio. Resumiu então esse seu livro e a apresentação
está disponível piketty.pse.ens.fr/en/files/piketty2014capital21csaopaulo1.pdf.
A
obra é densa em números e análise. A versão em inglês tem 685 páginas e
dela traduzi trechos citados abaixo. Raramente toca no índice de Gini,
que domina a análise da distribuição pessoal de renda no Brasil. Tal
índice varia de zero a 1, da distribuição igualitária para a totalmente
concentrada, mas sem chegar a esses extremos nas suas aplicações. E
abandonou Gini: "... é impossível resumir uma realidade multidimensional
com um índice unidimensional sem indevidamente simplificar as questões e
misturar coisas que não deveriam ser tratadas conjuntamente". Por essa e
outras razões, concluiu ser "muito melhor analisar desigualdades em
termos de tabelas de distribuição indicando as parcelas dos vários decis
e centis na renda total e na riqueza total..." (pág. 266). Decis e
centis são, por exemplo, os 20% ou 1% mais ricos e suas parcelas desses
totais. E no livro há perto de cem gráficos que facilitam entender seus
muitos números.
Estudos sobre o Brasil ganhariam com esse
enfoque. Assim, o livro também convence pelo que informa e tem de
metodologia. Sua tese principal: "Quando a taxa de retorno sobre o
capital excede significativamente a taxa de crescimento da economia
(como aconteceu por muito tempo na História... e provavelmente também
acontecerá no século XXI), a consequência lógica é que a riqueza herdada
cresça mais do que a produção e a renda... Nessas condições, é quase
inevitável que a riqueza herdada dominará e por grande margem a riqueza
amealhada por uma vida de trabalho, e a concentração do capital atingirá
níveis extremamente altos e potencialmente incompatíveis com os valores
meritocráticos e princípios de justiça social fundamentais às
sociedades democráticas modernas" (pág. 26). Discordo, pois se uma
economia seguir crescendo, com todos melhorando de vida, ainda que uns
mais e outros menos, mesmo estes poderão não ver injustiça social no
processo.
O livro não cita o Brasil uma vez sequer. A distribuição de
sua atenção se concentra em EUA, Japão, Alemanha, França e Grã
Bretanha. No nosso país a concentração de renda é muito alta e os dados
existentes não permitem analisar adequadamente a distribuição de
riqueza. Mas basta andar por aí para ver que também é fortemente
concentrada.
Quanto ao que fazer, novas discordâncias. Piketty
prega uma "tributação progressiva e global do capital", o que "exigiria
considerável grau de coordenação internacional" (pág. 27). Na palestra:
essa tributação "seria baseada na troca automática de informações
bancárias". Ora, não há como ter a aprovação unânime dessa ideia. Mais
países se tornariam paraísos fiscais para cidadãos insatisfeitos de
países aderentes, como já ocorre hoje com relação a países de tributos
mais altos.
Voltando ao Brasil, na apresentação recomendou: "...
precisa de mais transparência quanto a (dados de) renda e riqueza;
tributação progressiva sobre a renda, herança e riqueza seriam uma forma
poderosa de produzir informação sobre como os diferentes grupos de
renda e de riqueza se beneficiam do crescimento".
Ora, para
avançar nessa direção é fundamental atentar para as condições locais.
O.k. para maior transparência e tributação progressiva de renda e
herança. Aqui há impostos sobre renda em geral, propriedade imobiliária e
herança, chamados de diretos, e na Constituição há o Imposto sobre
Grandes Fortunas, que carece de lei complementar e vai ficando no
armário. Ademais, entre outras dificuldades esse imposto interferiria
com o IPTU e o Territorial Rural. Ambos carecem de cadastros que
reflitam melhor o valor das respectivas propriedades, o que também
poderia levar a uma cobrança mais realista e progressiva.
Ademais,
estudos mostram que impostos indiretos, como ICMS, IPI e outros,
predominantes na arrecadação tributária, são regressivos, pois incidem
sobre o consumo, cuja participação nos gastos das pessoas decresce com a
renda. Entre outras distorções, pesam muito nos preços e levam muitos
brasileiros a comprar no exterior. Caberia diminuir o gravame desses
impostos e ampliar o dos diretos. Nossa tributação não tem caráter e
prefere esconder impostos nos preços.
Pode-se também melhorar as
condições dos mais pobres atuando sobre os gastos públicos, como os do
Bolsa Família. E não dar tanto aos mais ricos, como nos financiamentos
subsidiados do BNDES. Na mesma linha, permanece por enfrentar o ensino
superior público gratuito, no qual predominam alunos cujos pais poderiam
pagar por ele, gerando recursos prioritariamente para bolsas de estudo
para estudantes pobres que sem elas têm de trabalhar. Ou seja, é preciso
ir do ensino gratuito para o estudante pago.
Também é
indispensável ponderar que o Brasil ainda não é rico. Os países que
Piketty observou mais têm renda por habitante com valor perto de quatro
vezes a do Brasil. Assim, os brasileiros precisam ser estimulados a
estudar, trabalhar, poupar e investir mais, acumulando mais capital nas
suas várias formas, sem que a insaciável sede tributária do governo os
desvie desse caminho.
*Roberto Macedo é economista (UFMG, USP e Harvard),
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