Passada a exaltação de ânimos provocada pela justificada indignação nacional com a sequência de revelações do escândalo “petrogate”, o affair merece uma análise sóbria de suas implicações e alcances institucionais.
A
Petrobras, embora referida na imprensa como uma estatal, a rigor é uma
sociedade de economia mista dada a composição público-privada de seu
capital. Como tal, está inserida num híbrido e complexo marco legal e
regulatório. Rege-se pela lei de sociedades por ações, pela regulação
das empresas de capital aberto, mas pauta-se também pelo direito
administrativo. Consequentemente deve ater-se à legislação sobre
licitações públicas assim como às normas da Comissão de Valores
Mobiliarios (CVM) e da Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA) onde são
negociadas suas ações, portanto subordinando-se simultaneamente a regras
de governança pública e corporativa. No que tange a licitações, a
Petrobras desde de 1998 ampara-se no Decreto 2745 que lhe faculta
isenção das exigências da lei 8.666 sobre licitações públicas de 1993,
simplificando o processo licitatório e aumentando sua competitividade
com outras empresas do setor a partir da abolição de seu monopólio do
setor. Esta simplificação permite à Petrobras, por exemplo, a simples
tomada de preços entre três fornecedores, facilitando também
irregularidades. Entretanto, devido à suspeita sobre a lisura deste
processo simplificado, há inúmeras ações pendentes no STF, contra a
Petrobras devido à não aplicação da Lei 8.666. A mais antiga tramita há
nove anos no Tribunal, sem que ainda tenha sido julgada. A demora tem
permitido que a Petrobras descumpra as determinações do TCU com base nas
liminares concedidas pelo STF. Um recente levantamento preliminar do
TCU mostra que 60% a 70% das aquisições da Petrobras foram realizadas
sem licitações, num total de R$ 60 bilhões a R$ 70 bilhões no período
entre 2011 e 2014.
O
escândalo adquiriu caráter de corrupção na medida em que a midia
revelou alegações de saqueamento de seu capital mediante super
faturamento e propinas vinculados a contratos de prestação de serviços e
obras, facillitado pelas flexíveis normas de licitações públicas. Isto
provocou a animosidade de segmentos do povo brasileiro, seus
“proprietários” lato sensu.
Impulsionada pela indignação popular veiculada pela imprensa nacional e
internacional, seguiu-se uma diligente campanha investigatória e de
fiscalização que tem enquadrado policialmente vários suspeitos destes
ilícitos. Alguns dos acusados ampararam-se na proteção de delação
premiada, que vêm revelando os alcances e meandros da artimanha
estelionatária e de corrupção política, já que os acusados teriam sido
indicados por legendas partidárias da base aliada do governo.
No
contexto de direito administrativo as transgressões por omissão ou
comissão imputadas ao Conselho de Administração da empresa e aos seus
diretores, seriam enquadradas como crimes de improbidade administrativa.
Esta face do affair,
cujos desdobramentos políticos serão conhecidos à medida que o processo
investigatório e criminal avança não é objeto destes comentários.
Interessam-nos mais as implicações de governança corporativa que têm
sido objeto de escassa análise na imprensa nacional.
Como
uma sociedade por ações de capital aberto (companhia aberta), embora o
seu maior detentor de capital seja a União, há que considerar também os
interesse de seus acionistas minoritários, representados no Conselho de
Administração da empresa. Entre estes estão, além dos acionistas cujas
ações são negociadas na BOVESPA, os que detêm ações na forma de ADRs
“American Depositoy Receipts”, que constituem certificados, descontáveis
em certos bancos norte-americanos, que comprovam propriedade destas
ações, negociados na NYSE (Bolsa de Valores de Nova Iorque). Neste
contexto, estes desvios de conduta do Conselho e de seus diretores são
caracterizados como falhas corporativas do dever de diligência (“due
diligence”), tanto dos seus membros como de seu Presidente, e de
estelionato no caso dos diretores que se locupletaram com propinas.
Estas
transgressões, devido ao marco legal híbrido da empresa, enquadram-se
nos códigos civil e criminal assim como violações de normas da BOVESPA e
da CVM. Caberia ao representante dos acionistas minoritários apontar e
combater judicialmente os desvios do dever de diligência do Conselho e
do seu Presidente mediante decisões que chancelaram os ilícitos. Caso
este representante tenha acompanhado o Conselho nestas decisões, caberia
a sua substituição por renúncia ou iniciativa dos acionistas
minoritários mediante uma ação de classe- “class action”.
As
investigações e respectivos enquadramentos a nível nacional deste
quadro de transgressões de governança corporativa até o presente não têm
merecido muita atenção da imprensa nacional. A desconhecida reação
destes órgãos reguladores e fiscalizadores, mormente da CVM e do
representante, no Conselho, dos acionistas minoritários pasma face às
iniciativas de seus homônimos internacionais. Como se deu a conhecer
recentemente na imprensa nacional, a NYSE, impulsionada pela SEC, exigiu
uma auditoria investigatória (“forensic audit”) para comprovar e apurar
as dimensões das alegadas fraudes licitatórias causadoras de
consideráveis danos ao capital da empresa e consequentemente lesivas aos
detentores de suas ações (ADRs) negociadas na NYSE.
Igualmente,
a SEC recentemente intimou a Petrobras a fornecer documentação para a
sua própria investigação criminal. Isto naturalmente como parte do
cumprimento das obrigações legais e estatutárias deste órgão em
beneficio do interesse dos detentores de ações da Petrobras negociadas
na NYSE e não provenientes de decisões governamentais. Face ao
desconhecimento se algo semelhante foi ou está sendo feito pela CVM
e/ou BOVESPA, poderia caraterizar-se também como negligência preocupante
destes órgãos, especialmente se comparados com os respectivos dos
Estados Unidos que já estão atuando.
Da
mesma forma, a justiça norte-americana já iniciou processo que corre em
sigilo de justiça para apurar se na compra da refinaria de Pasadena no
estado do Texas houve, por parte da Petrobrás, violação da legislação
norte-americana sobre corrupção internacional (“Foreign Corrupt Practices Act”)
que penaliza severamente empresários que subornem funcionários
governamentais no exterior. Estas ocorrências, agravadas pela
permanência na presidência executiva da Petrobras do mesmo funcionário
durante estas práticas ilícitas, refletem outra deficiência da cultura
de governança corporativa, que merece correção. As consequências
deletérias de tais deficiências são por demais conhecidas. As que
impactarão diretamente na Petrobras, além da enorme perda do valor de
seu capital acionário detido por investidores nacionais e
internacionais, serão as dificuldades crescentes de levantar no mercado
financeiro internacional os recursos que requer para dar continuidade
aos seus investimentos.
Caso
a auditoria em curso pela Price Waterhouse Coopers, requerida pela
NYSE, apresente um relatório com muitas reservas (“qualifications”), a
NYSE poderá excluir suas ações, que não mais poderão ser negociadas
nela. Adicionalmente, o desfecho do “petrogate” deverá pesar
consideravelmente num possível “downgrade” (rebaixamento) pelas agências
de classificação do grau de risco de investimento concedido ao Brasil,
com consequências nefastas para a credibilidade do país e as condições
de sua recuperação econômica.
Frente
a tantas deficiências institucionais tanto na esfera pública como
corporativa, o que resta de animador para a opinião publica brasileira é
somente a tenacidade e perseverança com que órgãos de estado – não de
governo- como a Polícia Federal, o Ministério Público e a Controladoria
Geral da União, entre outros, têm dedicado ao saneamento ético e moral
que os brasileiros tanto esperam de suas lideranças governamentais e
corporativas.
Rogerio
F. Pinto é doutor em Administração pela Universidade do Sul da
Califórnia, mestre em Ciência Política pela Universidade da Carolina do
Norte e especialista em Finanças Municipais na Universidade de Harvard.
Atualmente aposentado, foi durante várias décadas gerente de projetos de
desenvolvimento e analista institucional do Banco Mundial em Washington
Nenhum comentário:
Postar um comentário