"Alguns estádios foram construídos com um dinheiro que não existe, aumentando a dívida do governo. Se queríamos exemplos de irresponsabilidade fiscal que todos entendessem, a Copa foi um espetáculo", disse Franco, que presidiu o Banco Central de 1997 a 1999, à Folha.
Próximo ao PSDB, ele defende que o próximo governo faça uma
discussão "transparente" sobre o orçamento e critica a administração
Dilma Rousseff. "É preciso fazer quase uma comissão da verdade para saber
o que houve com as contas públicas."
Franco diz que a alta de preços
preocupa, mas nada comparável à hiperinflação que o Plano Real derrubou. Para o
economista, o país fez progressos institucionais contra o "comportamento
inflacionista dos políticos".
Folha: Vinte anos depois do lançamento do real, a inflação
ainda preocupa?
Gustavo Franco - A inflação é uma doença que vai nos ameaçar
sempre. Infelizmente tivemos um episódio crítico, que foi a hiperinflação. Por
isso, nosso organismo é mais sensível que o de outros países a essa doença. O que
significa que precisamos ter mais cautela pelo resto da vida. É como o alcoolismo:
não existe cura, só abstinência.
Folha: A inflação se aproxima do teto da meta estabelecida
pelo governo. É preocupante?
Não é comparável a 1992 e 1993, mas é grave. A experiência
dos vizinhos demonstrou que uma inflação, que pode até parecer pequena, se
torna desestabilizadora.
Na Argentina, a situação degringolou quando a inflação
chegou a 15%. Foi uma esbórnia de controle de preço e ocultação de informação.
Na Venezuela, a inflação subiu para 60% e, retirados os controles, já se parece
com hiperinflação. É uma inflação dolorida, porque gera escassez.
Esses países
demonstraram que existe uma fronteira, entre 10% e 15%, que é muito perigosa.
Será uma tragédia histórica se a inflação escapar e entrarmos na trajetória de
Argentina e Venezuela.
Folha: O Brasil corre esse risco?
O risco existe, mas é pequeno. Temos progressos
institucionais que nos defendem. O Banco Central hoje tem outro status. A lei
de responsabilidade fiscal representou uma tomada de consciência da população
da importância de proteger a moeda e as finanças públicas. É isso que nos salva
hoje de um governo que, na ausência dessas condições, sabe-se lá o que estaria acontecendo.
Folha: Como o próximo governo deve controlar a inflação?
O próximo governo precisa recompor os pilares de uma
economia sadia, que foram abandonados por questões ideológicas.
Temos que falar da responsabilidade fiscal em todas as suas
dimensões e não apenas em superavit primário. É preciso fazer quase uma
comissão da verdade para saber o que houve com as contas públicas nos últimos
tempos.
O segundo ponto é o câmbio flutuante. O que está em jogo é o
relacionamento do Brasil com o mundo. Com o Plano Real, abrimos o país para a
economia internacional. Recentemente houve um recuo perigoso em direção a
ideias dos anos 1950.
Também existia no Brasil a percepção de que o
governo gostava da liderança.
Folha: O Plano Real se baseou em juros altos para
estabilizar a inflação. Como resolver isso?
Não concordo com a premissa. O Plano Real foi calcado em
fundamentos macroeconômicos, fiscais, monetários e cambiais. Para isso utilizou
todas as âncoras disponíveis: política monetária, fiscal e cambial.
A política
monetária foi usada de forma pesada em alguns momentos, quando a política
fiscal não pode ser utilizada. A política cambial também. Depois que a situação
fiscal melhorou em 1997 e 1998, foi possível mudar.
Folha: Como baixar os juros?
Esse dilema ficou na cabeça do governo, que acha que a única
maneira de reduzir a inflação é subir os juros. É perfeitamente factível
reduzir os juros se houver uma política fiscal correta.
O atual governo tentou
reduzir os juros sem responsabilidade fiscal e teve que voltar atrás. Esse é o
governo dos juros altos tanto quanto qualquer outro.
Folha: Qual foi o principal mérito do Plano Real?
Reduzir uma inflação que chegou perto de 12.000% ao ano para
1,6% em 1998, sem praticamente nenhuma alteração do desemprego.
Folha: E qual foi o principal defeito?
É difícil apontar um defeito no plano de estabilização. Só
que a estabilização não resolve todos os problemas. Muitas reformas poderiam
ter sido feitas, mas foram interrompidas. Só que aí entramos em outro processo,
que é a recomposição do crescimento.
Folha: Até a desvalorização em 1999, vocês mantiveram o
câmbio fixo por tempo demais?
O câmbio valorizado não foi um desejo, mas um problema que
tivemos de lidar. Até perto da crise da Rússia (1998), o Brasil sofria uma
enxurrada de dólares. A dificuldade de fazer o câmbio desvalorizar era grande
–situação parecida com o que viveu o governo Lula em 2008.
Tínhamos duas
alternativas: deixar flutuar o câmbio e fazer uma maxidesvalorização, ou
sustentar a política cambial, fechar um acordo com o FMI, deixar o tumulto
passar, e fazer uma flutuação fora da crise. Escolhemos a segunda opção.
A experiência recente do PT destrói o argumento de que
estávamos mantendo o câmbio artificialmente valorizado. O dólar estava quase em
R$ 1,50 quando veio a crise de 2008 e bateu em R$ 2,50.
Folha: Você teve dúvidas de que o Plano Real funcionaria?
Tive dúvidas e certezas todo o tempo. Nesse ramo, você tem
convicções muito fortes, mas não controla todas as variáveis. A dúvida é
saudável porque te deixa mais vigilante aos imprevistos. E por mais esperto que
esteja, o imprevisto sempre vai ser pior do que você esperava.
Folha: Que tema hoje mereceria um novo Plano Real?
É preciso continuar o processo que começamos. O brasileiro
chegou perto de entender as causas da inflação e estabelecer instituições que
evitem o comportamento inflacionista dos políticos.
Nos últimos anos, esse
comportamento voltou. A inflação começou a subir e a reação popular foi forte.
O futebol ajudou muito porque se tornou uma metáfora exata das causas da
inflação.
Nada pode ser mais ilustrativo da forma como as finanças públicas são
conduzidas do que os estádios superfaturados e a discricionariedade de como um
político determina que um banco federal coloque R$ 1 bilhão para construir um
estádio do nada.
Folha: Mas os manifestantes pediam para gastar em saúde e
educação e não para economizar...
Esse debate é maravilhoso e deveria ocorrer no orçamento. É
aí que as pessoas devem dizer que querem escola e hospital em vez de estádio.
Isso confrontado com a disponibilidade de dinheiro.
Em muitos casos, os
estádios são construídos com dinheiro que não existe, aumentando a dívida do governo.
Se queríamos exemplos de irresponsabilidade fiscal que todo mundo entendesse, a
Copa foi um espetáculo.
Cada estádio é um exemplo de um rombo de mais ou menos
R$ 1 bilhão. Se esse dinheiro existia, por que não foi utilizado para outra
coisa?
O próximo governo precisa de uma proposta de orçamento transparente. Nunca
organizamos direito nosso orçamento, que é o centro econômico de qualquer
democracia digna desse nome.
Fonte: "Copa é exemplo de irresponsabilidade Fiscal". Indicado pelo querido Vladmir, a quem agradecemos.
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