Um comunicado divulgado há duas semanas mudou drasticamente as perspectivas para o balanço da Petrobras. Da noite para o dia, as projeções de lucro no segundo trimestre subiram para R$ 5 bilhões, contra a expectativa anterior de que a empresa fechasse o período no zero a zero, sem lucro nem prejuízo.
O anúncio não dizia respeito a descoberta de uma super-reserva de petróleo, nem um aumento nos preços dos combustíveis. Tratava-se apenas de uma mudança nas regras contábeis adotadas pela companhia que, sozinha, tem o poder de tirar cerca de R$ 7 bilhões em perdas financeiras esperadas para o segundo trimestre.
Na quarta-feira, foi a vez da Braskem adotar o mesmo dispositivo da Petrobras. Numa tacada só, o J.P. Morgan revisou a perspectiva para as perdas da companhia no segundo trimestre, de R$ 1,2 bilhão para R$ 200 milhões e afirmou que a empresa vai começar a distribuir dividendos neste ano. A petroquímica é uma das coligadas da estatal, que tem uma participação de 36% no capital.
O "sumiço" repentino de uma cifra bilionária das demonstrações de resultados trouxe diversas críticas sobre o viés político da decisão. Com lucro maior no curto prazo, os dividendos também aumentam, beneficiando o governo, na posição de controlador da Petrobras, o que fez com que as palavras "manobra contábil" e "contabilidade criativa" se multiplicassem nos relatórios de análise de diversos bancos.
Mas apesar do efeito bastante conveniente para os acionistas no curto prazo, especialistas ouvidos pelo Valor garantem que não há nenhum passe de mágica ou truque na medida. O que a Petrobras fez foi adotar um dispositivo previsto pelo pronunciamento contábil 38 (CPC 38) e ainda pouco conhecido, que rege a chamada "contabilidade de hedge". O intuito é reduzir o sobe-e-desce na última linha do balanço e trazer um retrato mais claro da situação operacional da companhia nas demonstrações de resultados.
Petrobras e Braskem vão utilizar parte da variação cambial sobre sua dívida em moeda estrangeira como "proteção" para uma eventual queda do câmbio em uma fatia de suas receitas previstas com exportação. Sem a contabilidade de hedge, toda a dívida em moeda americana é corrigida pela cotação do dólar: a diferença é contabilizada como ganho ou perda financeira, ainda que a maior parte desse passivo vencerá apenas no longo prazo.
Com o mecanismo, a variação cambial sobre parte dessa dívida é "reservada" numa conta no patrimônio líquido e só passa para a demonstração de resultados quando a receita que serve como contrapartida é faturada. A Petrobras se inspirou na fabricante de alimentos BRF, única empresa de grande porte adotar o mecanismo que contrapõe dívidas a exportações no país. Segundo apurou o Valor , técnicos da estatal consultaram a equipe financeira da companhia para entender melhor o modelo.
O CPC 38 prevê diversas situações em que instrumentos de hedge podem contar com uma contabilização especial. Mas, na maioria dos casos, esses instrumentos envolvem derivativos. A única exceção, que permite a utilização de um não derivativo, é para a proteção de um risco cambial. "As empresas estão mais acostumadas a utilizar o CPC 38 para contabilizar derivativos. Poucas ainda sabem ou tem segurança para utilizar o dispositivo que autoriza o uso de dívida", afirma César Ramos, autor do livro "Derivativos, riscos e estratégias de hedge" e consultor de companhia que adotaram a prática, como a própria BRF.
Com o modelo, tanto Petrobras quanto Braskem se protegem de uma eventual queda do dólar sobre a receita com exportações. Na prática, o que as empresas fizeram foi "garantir" parte de sua receita operacional no câmbio de maio - quando o dólar Ptax estava próximo dos R$ 2 -, quando a operação foi designada.
Num exemplo hipotético (ver esquema ao lado), a empresa tem US$ 1 milhão em dívidas em dólar e US$ 1 milhão em receitas com exportação a ser faturadas. Se o câmbio for a R$ 1,50, o "ganho" de R$ 500 mil com a variação cambial sobre a dívida fica reservado no patrimônio líquido. Quando a exportação for faturada, caso o câmbio se mantenha nesse patamar, trará uma receita de R$ 1,5 milhão - menor que a esperada em maio, portanto. A variação cambial sobre a dívida, que estava reservada no patrimônio, no entanto, entra como um ganho na receita operacional, que, no fim das contas, fica em R$ 2 milhões - travada, portanto, no câmbio inicial de R$ 2.
Apesar da segurança de que parte da receita virá no câmbio esperado e da redução da instabilidade, a estratégia é mais bem-sucedida em termos de efeito no lucro no caso de queda no câmbio. Isso porque ambas as companhias também tem custos em dólar, que não estão envolvidos na operação.
Se o dólar cair, a receita ficará travada em R$ 2 milhões, enquanto os custos serão contabilizados com a moeda americana mais barata. O resultado é um número maior na última linha do balanço. Na contramão, no caso de alta do dólar, o lucro contábil tende a diminuir, já que os custos serão contabilizados por um câmbio maior do que parte da receita.
Em sua estratégia, a Petrobras utilizará 70% de sua dívida para proteger 20% de suas receitas com exportação dos próximos sete anos. Fontes consultadas pela reportagem afirmaram que, apesar de dentro da regra, o prazo é "ambicioso". "O normal é que as empresa tracem essa operação para um horizonte de seis meses até dois anos", disse um interlocutor. Ele reconhece, no entanto, que, com um horizonte maior para as exportações, é possível envolver uma parte maior da dívida na operação - o que tira uma fatia maior das perdas financeiras da demonstração de resultados e melhora o lucro. Procurada, a Petrobras não quis se pronunciar. A Braskem ainda não divulgou os percentuais envolvidos em sua estratégia.
Regra contábil vira o jogo para endividadas - Natalia Viri - Valor Econômico - 26/07/2013
Nenhum comentário:
Postar um comentário