Por que ler hoje transcrições dos debates que aconteceram na conferência de Bretton Woods, de 1º a 22 de julho de 1944? Valerá a pena, se forem transcrições do que delegados disseram em reuniões de trabalho sem preocupar-se com a divulgação – não prevista – de suas opiniões e argumentos. Será possível captar, assim, sinais de reveladora espontaneidade e pormenores inéditos, esquecidos no tempo. Essa oportunidade é dada agora pelo livro “The Bretton Woods Transcripts”, editado pelos economistas Kurt Schuler e Andrew Rosenberg, publicado pelo Center for Financial Stability (CFS), com sede em Nova York.
As transcrições não são completas, mas parecem ser fiéis, tanto quanto se possa esperar de eficiência das estenografas e datilógrafas que registravam os debates durante a conferência, realizada em Bretton Woods, nas montanhas de New Hampshire, Estados Unidos – que resultou nos acordos para criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (o Banco Mundial de hoje). Num e-book de 800 páginas, as transcrições integram uma plataforma eletrônica de estudo e pesquisa, o “Bretton Woods Project“, sob responsabilidade de Schuler (não confundir com o Bretton Woods Project, de Londres, que faz o acompanhamento crítico das atividades do FMI e do Banco Mundial).
Foram acrescentados hiperlinks para documentos referenciados nas transcrições. Sumários introduzem as reuniões das comissões e dos respectivos comitês de trabalho (a Comissão I, do FMI, era presidida pelo americano Harry Dexter White; a Comissão II, do Banco Mundial, pelo britânico John Maynard Keynes; a Comissão III, de outros meios de cooperação financeira, pelo mexicano Eduardo Suárez). Há muitas anotações explicativas e notas historiográficas, mais de 3 mil páginas de documentos históricos e detalhes, que não se encontram no livro, sobre a conferência e seus participantes, além de material de “background” inédito e fotografias.
Informações suplementares às transcrições alcançam níveis surpreendentes de reconstituição de fatos e pormenores dos entornos da conferência, a começar pela cuidadosa organização do encontro. São reproduzidos memorandos com regras para uso de vales-refeições, o catálogo de ramais telefônicos dos delegados, a meticulosa orientação para transporte por ônibus entre o Mount Washington, onde a conferência era realizada, e outros hotéis próximos, que também hospedavam delegados (a economia de guerra não permitia o uso de automóveis). Podem-se ler os boletins diários distribuídos aos delegados com detalhada descrição do andamento da guerra (a invasão da Normandia pelas forças aliadas tinha apenas um mês).
Schuler, que tem sua principal atividade como economista do Escritório de Assuntos Internacionais do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos, também é, no tempo livre, pesquisador sênior do CFS. Foi nessa condição que encontrou as transcrições, por acaso, na biblioteca do Tesouro. Eram quatro volumes, que os bibliotecários também não sabiam estar ali, numa seção de itens a serem catalogados. Durante mais de um ano, Schuler conduziu a edição do livro, com a participação de Rosenberg, pesquisador associado do CFS. Ele soube depois que havia outras transcrições – um conjunto, nos arquivos do FMI, aparentemente idêntico ao do Tesouro, na forma de cópias fotostáticas, também reunidas em quatro volumes; e o que parecem ser originais, em páginas soltas, nos Arquivos Nacionais, em Washington. A diferença entre os registros encadernados é que os do Tesouro trazem, em várias páginas, o nome de Harry Dexter White, chefe da delegação americana em Bretton Woods, a quem teriam pertencido, enquanto nos do FMI o nome em destaque é de Edward Bernstein, assistente de White.
O “Bretton Woods Project” transpira história, particularmente, a de antigos e repetidos enredos de divergências de interesses de países em diferentes níveis de importância política e econômica – mesmo que fossem Estados Unidos e Reino Unido. Desde muito antes de Bretton Woods, americanos e britânicos estiveram conectados no empenho por desenhar um novo sistema financeiro internacional para o pós-guerra, mas dissociavam-se no alcance, filosofia e funções das instituições que imaginavam para administrar o arranjo reformista.
Em abril de 1943, White, assistente especial do secretário do Tesouro dos Estados Unidos (Henry Morgenthau Jr.), e Keynes, conselheiro do Tesouro do Reino Unido, autorizaram a publicação dos textos de suas respectivas propostas de reforma (formuladas inicialmente em 1942), para que recebessem sugestões de um número restrito de países. Transcorreria mais um ano, e em abril de 1944 chegava-se aos termos de uma manifestação conjunta, o “joint statement of experts on the establishment of an international monetary fund”, com as bases do que deveria ser discutido na conferência de julho, em Bretton Woods. O predomínio das diretrizes da proposta de White no “joint statement” já dizia quem era quem na orientação do assunto. Os Estados Unidos, maior economia e maiores credores internacionais, donos de 60% das reservas de ouro do mundo, estabeleceriam os termos de qualquer entendimento final. E assim foi.
“Plus ça change, plus c’est la même chose”, diz Jacques de Larosière, ex-diretor-gerente do FMI (1978-1987), no prefácio que assina para o livro. Seu ceticismo é dirigido para várias situações em que, naquelas três semanas de muita conversa de corredores e longas sessões de trabalho, propostas de países menores eram seguidamente derrubadas por pressão dos maiores, Estados Unidos à frente. De Larosière valoriza a qualidade dos debates – “vigorosos e substantivos” – mas também diz (uma ponta de sarcasmo?), referindo-se àquelas pretensões frustradas, que em certos momentos as discussões parecem bastante “modernas”, por se assemelharem às de que os países hoje ditos de mercado emergente participam em foros internacionais. O prefácio termina com uma sugestão sutil, pode-se interpretar assim, de que a linha das costuras de política e economia sempre será dada pela incerteza, ou pelo acaso: “Bretton Woods foi o resultado de uma tempestade perfeita: alguns grandes problemas; um conjunto de ideias que levaram a um consenso; um grupo de participantes preparados e capazes; e um líder, os Estados Unidos, preparado para liderar. Hoje, não vemos uma tempestade perfeita como essa no horizonte. Mas, de novo, também não se pretende fazer previsões meteorológicas”.
Teria sido tudo teatralização produzida para sacramentar o que já estava acertado entre americanos e britânicos, tanto para o que havia para se decidir como para o que se faria depois da conferência?
Houve muita preparação, desde anos antes – e, embora outros países fossem ouvidos em vários pontos do trajeto, o domínio dos Estados Unidos e do Reino Unido, sobretudo dos americanos, com todo o poder econômico e político já então aumentado na progressão da guerra, sempre foi marcante e inconteste. Não seria estranho a esse entendimento de supremacia compartida o empenho de White e de Keynes em evitar votações e induzir consensos – os latino-americanos, quase metade do número de delegados, poderiam formar maioria incômoda só com uns poucos europeus. Não seria de desprezar também a contribuição muito pessoal de Keynes. O chefe da delegação britânica falava bastante depressa, para desconforto declarado de muitos delegados, e procurava contornar eventuais inclinações para se ir à votação concedendo apenas uma breve pausa para manifestação de objeções, e logo dava o assunto por encerrado.
Essa é uma interpretação. Schuler tem outra, mais elaborada. “Os delegados entendiam que decidir importantes questões estritamente por votos, em vez de antes obter consenso, seria contraproducente, e há discussão sobre esse ponto nas transcrições. A maior parte do capital do FMI e do Banco Mundial viria dos países de economias maiores, que poderiam recusar-se a participar se vencidos em votações por economias menores.” E havia um outro lado: “As grandes economias entendiam que as economias menores poderiam também se recusar a participar se as maiores tentassem impor decisões. Estava claro então que, sem consenso que unisse grandes e pequenos, nem o FMI nem o Banco Mundial seriam as instituições verdadeiramente mundiais que os países participantes pretendiam que fossem. A conferência foi um primeiro passo para se ver se consensos poderiam ser alcançados. Depois que o FMI e o Banco Mundial iniciaram suas operações, de fato operaram, e em larga medida continuaram a operar, à base de consenso”.
Não parecem teatrais os longos debates provocados pela China, por exemplo, que, ao lado de outros países (Holanda, Índia, Grécia, Canadá, Egito e El Salvador) viu sair vencedora sua proposta de que remessas financeiras de imigrantes, desde que moderadas, não fossem incluídas como item sujeito a controles, na conta de capitais, como pretendia a União Soviética (com apoio de Cuba, Bolívia e França). Tem cores vigorosas e substantivas, para usar a adjetivação de De Larosière, a confrontação de posições na questão de envolvimento do FMI em acordos sobre dívidas de guerra, com o que Estados Unidos e Reino Unido não concordavam (e a ideia acabou rejeitada). Em outras passagens, lê-se a argumentação insistente de países que pretendiam ter quotas maiores no capital do FMI, o que significaria mais poder de voto, ou que pressionam para obter redução de sua contribuição em ouro. As propostas foram rejeitadas, assim como a que colocava representantes do Oriente Médio e da América Latina entre os diretores executivos do Fundo. A delegação da Índia aparece afrontando a soberania britânica mais de uma vez.
Representantes do Brasil, chefiados pelo ministro da Fazenda, Artur de Souza Costa, aparecem como participantes de debates em vários pontos das transcrições – entre eles, Eugenio Gudin, membro do Conselho Econômico e Financeiro e do Comitê de Planejamento Econômico da Presidência da República, e Octávio Gouvêa de Bulhões, funcionário da divisão de estudos econômicos e financeiros do Ministério da Fazenda. O diplomata Roberto de Oliveira Campos, então segundo secretário da embaixada em Washington, tinha funções de assessor.
Costa presidia o comitê 3 da Comissão 1, incumbido da “Organização e gestão do Fundo”. A distinção conferida ao Brasil se devia, segundo Schuler, ao fato de “os organizadores da conferência desejarem que houvesse ampla participação, e não a dominação por uns poucos países”. Daí, “o cuidado de assegurar que funções importantes, como a presidência de comitês, fossem entregues a vários países, como o Brasil, já então uma grande economia entre aqueles que chamaríamos hoje de mercados emergentes”. Não parece improvável, contudo, que também tivessem influído a contribuição do governo Vargas para o esforço de guerra dos aliados na Europa e a permissão para que os americanos usassem portos e aeroportos do Nordeste.
Schuler menciona o relator do comitê, o tcheco Ervin Hexner, entre alguns delegados particularmente bem preparados, intelectualmente, que se destacavam nos debates, mesmo pertencendo a pequenos países. Também tinham essa qualidade, “e influíam sobre a opinião de outros delegados”, o grego Kryiaks Varvaressos e o norueguês Wilhelm Keilhau (como relatores, sintetizavam o que acontecia nos comitês para conhecimento dos integrantes das comissões 1 e 2, do FMI e do Banco Mundial). Schuler também considera elogiável o trabalho de Luís Machado, de Cuba.
Sobre Souza Costa – “experiente em assuntos financeiros e falando um bom inglês” -, a opinião de Schuler é de que, como presidente do comitê, tinha atuação bastante discreta (“light touch”, como disse em entrevista ao Valor). Mantinha os trabalhos dentro da agenda, “mas preferia deixar para os delegados mais ativos e para o relator Hexner a incumbência de moldar o debate”. Algo a ver, talvez, com o que diria Eugenio Gudin em depoimento a pesquisadores do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, anos depois, relembrando Bretton Woods: “Quem trabalhava de fato, acompanhando as sessões, éramos o Bulhões e eu” (citado em “Atuação da delegação brasileira na formulação do acordo internacional de Bretton Woods, 1942-1944″, de Daniel de Pinho Barreiros, 2009).
Roberto Campos, anos depois, iria referir-se a Costa como alguém pouco afeito ao uso da língua inglesa e “de escassas letras econômicas, mas de extraordinário bom senso prático” (em “Eugênio Gudin Visto por Seus Contemporâneos” (FGV, 1979).
À vista dessa opinião atribuída a Campos, informada pelo Valor, Schuler disse ser possível concluir, então, que o inglês de Costa seria pelo menos de nível “intermediário alto”. Ou seja, “bom o suficiente para expressar-se em pronunciamentos curtos, mas talvez não suficiente para fazer longos discursos de improviso”. Nas transcrições, Costa aparece justamente expressando-se em intervenções curtas. De todo modo, pode-se supor que, como orientação geral de trabalho, estenografas e datilógrafas procurassem acomodar o teor das falas dos delegados segundo as melhores formas do idioma.
A União Soviética produziria um momento especialmente peculiar. Depois de assinar os acordos de constituição do FMI e do Banco ad referendum, recusou adesão ao requisito de transparência, que obrigava à comunicação regular de informações econômicas, e não se tornou membro das instituições, por decisão de Stálin. A Rússia só o faria em 1992, depois do colapso da União Soviética [Schuler registra que a conferência teve apenas uma mulher como delegada, uma certa L. Gouseva, "tão obscura que não conseguimos descobrir seu primeiro nome". Talvez seja ela a presença feminina em foto que reúne delegados soviéticos e americanos. Não é vista em outra foto, de todos os delegados à conferência.]
Enquanto isso, o chefe da delegação americana, Harry Dexter White (seu superior, o secretário do Tesouro, Henry Morgenthau Jr., presidia a conferência), entendia-se com os soviéticos muito amigavelmente, e desde bem antes da conferência: passou à história sob suspeita de espionar para a URSS.O chefe da delegação brasileira, ministro Artur de Souza Costa, tinha atuação bastante discreta – era “light touch”, diz Kurt Schuler.
“White não era formalmente um espião, no sentido de estar na folha de pagamentos dos soviéticos, receber ordens de agentes de inteligência soviéticos ou fazer relatórios a um mensageiro regularmente”, diz Schuler. “No entanto, transmitiu informações sigilosas para os soviéticos e valeu-se de sua posição [no governo americano] para proteger pessoas suspeitas de espionagem, que, soube-se depois, de fato eram espiãs.”
White não estava sozinho. Nathan Gregory Silvermaster, assistente da delegação americana, nascido na Rússia, é outro nome envolvido em espionagem para os soviéticos. Na época da conferência, trabalhava no Departamento do Tesouro. Seria o chefe de um grupo de espiões infiltrados na Casa Branca e nos Departamentos de Guerra, de Justiça e de Agricultura. Dois outros espiões eram membros do secretariado da conferência, segundo Schuler: Virginius Frank Coe, principal encarregado da área técnica, e William Ludwig “Lud” Ullman.
Nas anotações de James Boughton, historiador oficial do FMI, White acreditava que os interesses dos Estados Unidos e da União Soviética convergiam. “Ele era um internacionalista [condição que explicaria suas relações com os soviéticos]. Assim como o presidente Roosevelt e o secretário do Tesouro Morgenthau, acreditava que nenhum país poderia alcançar prosperidade, a menos que outros países também prosperassem, e que o equilíbrio do crescimento econômico global requeria cooperação entre governos. Roosevelt recomendou a seus auxiliares que tratassem os soviéticos exatamente como qualquer outro aliado, e White assim fez.” A parte fundamental do empenho de White para obter a cooperação desejada consistiria em trazer a União Soviética para o FMI e o Banco, propósito que buscava desde bem antes de Bretton Woods.
Quando o Fundo entrou em operação, em 1946, o presidente Truman fez de White o primeiro diretor executivo americano. Sua saúde deteriorou-se rapidamente e ele renunciou um ano mais tarde. Morreu de ataque cardíaco, em agosto de 1948, três dias depois de seu dramático testemunho perante o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara dos Representantes, quando negou ter de algum modo atuado em desfavor dos interesses dos Estados Unidos.
Keynes já havia morrido, em abril de 1946, aos 62 anos, também de um ataque cardíaco. Ainda durante a conferência – e enquanto Londres continuava sob os bombardeios alemães -, o chefe da delegação britânica sofreu um primeiro ataque, mas leve. Jornais alemães, mal informados, publicaram seu obituário.
Fica-se sabendo também, no livro, que outras razões, além das de segurança – próprias de tempos de guerra, em que se procurava resguardar a capital, Washington, de algum transtorno -, determinaram a escolha das montanhas de Bretton Woods para localização da conferência. Interessado em garantir apoio bipartidário aos acordos que viriam a ser assinados, o presidente Roosevelt atendeu a um pedido do senador Charles Tobey, de New Hampshire, líder dos republicanos no comitê de moeda e bancos do Senado, cuja aprovação seria fundamental. Tobey, que tinha um oponente na eleição primária republicana, sugeriu que a conferência fosse realizada em seu Estado como forma de mostrar-se influente aos olhos dos eleitores.
Também teria pesado, ainda que acessoriamente, o fato de que, ao contrário de muitos hotéis “resort” da época, o Mount Washington aceitava hóspedes judeus – e eram muitos os judeus, entre delegados e pessoal de “staff”. Não se sabe até que ponto teria influído um pedido de Keynes a White: ele preferia não passar pelo calor sufocante do verão em Washington, numa época em que o uso de ar condicionado ainda era pouco difundido. Escreveu para White em maio de 1944: “Pelo amor de Deus, não nos leve para Washington em julho. Seria um ato de extrema hostilidade”. Afora quaisquer outras considerações de ordem logística, a escolha do lugar precisamente pela liberalidade quando à origem dos hóspedes sempre fará lembrar que Keynes não escondia certa indisposição para com os judeus.
Nas transcrições, Keynes é uma presença menor do que aquilo que foi de fato sua participação em Bretton Woods, observa Schuler. Estenografas transcreveram apenas uma das nove reuniões da Comissão II, que ele presidia, enquanto cobriam todas as nove reuniões da Comissão I, do FMI, presidida por White. A ideia de criação do Banco, na verdade, sempre foi tratada de modo subordinado durante a conferência. Já no convite para participação no encontro, enviado pelo presidente Roosevelt aos governos de 44 países, era mencionada como não mais que uma possibilidade. O FMI estaria em primeiro lugar.
De todo modo, “é possível notar o contraste evidente entre os estilos de Keynes e de White”, comenta Schuler. “White se expressava metodicamente, num ritmo em que os delegados podiam acompanhar. Keynes falava com extrema rapidez, saltando de um ponto para outro do esboço do acordo do Banco, porque era capaz de reter mentalmente todas as cláusulas de um modo que provavelmente nenhum outro delegado podia. Henry Bitterman, secretário de um dos comitês da Comissão II, diria depois que outros delegados consideravam o estilo de Keynes, como presidente, um tanto confuso.”
As estenografas contratadas para registrar os debates ganhariam expressão própria como personagens da história de Bretton Woods, ao atuarem como aliadas informais de White. Para permitir que a conferência mantivesse foco sobre o acordo do FMI (interesse primordial dos Estados Unidos), a Comissão II e respectivos comitês não iniciaram seus trabalhos até que a conferência tivesse vencido sua primeira metade, lê-se no livro. Como a Comissão II era secundária em relação à Comissão I, a secretaria da conferência enviava estenografas para a Comissão I quando não as havia em número suficiente para acompanhar os trabalhos das duas comissões ao mesmo tempo. Como consequência, restou uma única transcrição da segunda reunião da Comissão II e nenhuma transcrição das reuniões de seus comitês.
Pode-se imaginar Keynes circulando entre uma comissão e outra com seus 2 metros de altura e a passos proporcionalmente largos. White ficava vários centímetros abaixo. Keynes também aparece na primeira, segunda e terceira reuniões da Comissão I. É possível que tenha feito algumas das observações atribuídas a delegados do Reino Unido quando não se especificam seus nomes.
O estilo do barão Keynes tinha, como seria de esperar, traços típicos de um lorde. O economista Gail Makinen falou a Schuler a respeito de uma conversa que tivera com Jacques Polak, membro da delegação holandesa à conferência (que depois ganharia projeção no FMI). Makinen perguntou: “Você conheceu Keynes”? Respondeu Polak: “Sim, mas não sei se Keynes me conheceu”. É de notar também que o modesto título de conselheiro econômico do chanceler do Erário contrastava com o papel central desempenhado por Keynes na gestão das finanças de guerra do Reino Unido, atribuição que o levou a ser indicado para ser o negociador-chefe em Bretton Woods.
Estados Unidos e Reino Unido foram os protagonistas inquestionáveis daqueles dias de julho de 1944 nas montanhas de New Hampshire, como haviam sido em ocasiões anteriores, num encadear de movimentos em que outros países tinham participação claramente secundária – enquanto americanos e britânicos, já com White e Keynes à frente, procuravam entender-se sobre o que poderia ser um sistema de cooperação e reconstrução econômica internacional para o pós-guerra.
A proposta de criação de um fundo internacional de estabilização (o Plano White, dos americanos) e a de uma espécie de câmara de compensações internacionais (o Plano Keynes) tinham sido apresentadas a um grupo de países em Washington, para recolhimento de sugestões, em reuniões que se estenderam de 15 de maio a 17 de junho de 1943. Nasceria ali a declaração conjunta (o “joint statement”), consolidada por técnicos americanos, britânicos e soviéticos, que propunha a criação do Fundo Monetário Internacional e do Banco para a Reconstrução e o Desenvolvimento (a palavra “Internacional” seria acrescentada em Bretton Woods).
Estava tudo pronto para a convocação da conferência de Bretton Woods pelo presidente Roosevelt. Mas o secretário de Estado americano, Cordell Hull, entendeu que, como a declaração tratava de questões monetárias de modo ainda genérico e, também, porque não se tinha chegado a consenso a respeito de vários aspectos, principalmente entre os defensores do Plano Keynes, decidiu convocar uma nova reunião, já então com a presença de vários dos países que estariam em Bretton Woods. Esperava-se, assim evitar que fossem levadas para a conferência questões com arestas demasiado evidentes, o que poria em risco o pretendido caráter de congraçamento e legitimação da conferência. Essa segunda reunião foi realizada em Atlantic City, Nova Jersey, Estados Unidos, de 26 a 30 de junho de 1944. (Nas duas ocasiões, o Brasil foi representado por Octávio Gouvêa de Bulhões.)
Então, não se partiu do zero, em Bretton Woods, nem estaria tudo, em todos os pormenores, decidido por antecipação. Segundo Schuler, em Atlantic City, algumas ideias básicas a respeito da criação do FMI e do Banco ganharam conformação concreta. “Ainda faria parte do trabalho de Bretton Woods, porém, aceitar ou rejeitar aquelas propostas, e acrescentar detalhes nas áreas em que a reunião de Atlantic City não tivesse oferecido propostas suficientes, em número ou especificidade.”
Schuler diz que as próprias transcrições ajudam a compreender que, exatamente por esses antecedentes, “a conferência conseguiu tão bons resultados, com delegados bem preparados, que focavam questões essenciais e geralmente evitavam fazer longas digressões” – além do que “trabalhavam duro, de 9 da manhã até, às vezes, 3 da madrugada seguinte”.
Estendido o trabalho a esse ponto, já teria partido o último ônibus, de 1h30, que levava americanos e chineses retardatários do hotel Mount Washington para Crawford House, onde estavam hospedados (os brasileiros tinham sido acomodados no próprio Mount Washington Hotel, como se vê na lista de ramais telefônicos). Haveria certamente alguma solução para emergências como essa e outras, eventuais, mas seriam sempre exceções. Warren Kelchner, secretário-geral da conferência, tratou do assunto num comunicado em que lembrava as condições difíceis de tempos de guerra, que tornavam impossível prover transporte individual a qualquer hora. “Naturalmente, seria muito mais satisfatório ter uma frota de automóveis ou de táxis à disposição, mas isso está absolutamente fora de questão”.
Nas longas reuniões dos comitês, ou nos corredores, uma pergunta deve ter sido discutida mais de uma vez: vamos para o consenso? Na opinião de Schuler, as decisões tomadas por consenso e não por votação, sempre que possível, prática até hoje adotada no FMI e no Banco Mundial, “contribuiriam para sua inusual adaptabilidade”: mesmo com muito mais membros do que na fundação, “mantiveram-se capazes de agir rápida e conclusivamente”.
O que não significa, evidentemente, que os países menores estejam sempre satisfeitos com decisões a que são levados, às vezes por consenso inescapável, em situações de alta voltagem política, como aconteceu o tempo todo em Bretton Woods.
O sistema de paridades fixas ajustáveis entre moedas – que, a rigor, nunca funcionou em perfeita consonância com as regras fixadas em Bretton Woods, negligenciadas principalmente por países mais assoberbados por disfunções econômicas trazidas pela guerra – acabou ruindo em agosto de 1971, quando o governo de Richard Nixon anunciou que os Estados Unidos não mais garantiriam (essa era a base do sistema) a conversibilidade do dólar em ouro à taxa estabelecida (de US$ 34 por onça-troy). Washington movia-se por razões praticamente somente suas, associadas à conjugação de elevada inflação e perda de competitividade nos mercados internacionais. Foi o sinal para outras moedas também entrarem em regime de flutuação administrada. Pode-se ver aí um país-líder que se curva a contingências determinantes do declínio de sua hegemonia. Ou, ao contrário, seria um país que, sobrepondo seus interesses a quaisquer outros, afirma sua hegemonia. Em qualquer caso, se estará falando de política e de cenários econômicos em constante e, frequentemente, inesperada mutação.
A julgar pelo fracasso do sistema de Bretton Woods, estaria claro que a economia internacional tende a mover-se por interesses esparsos e desconexos, sem uma coordenação eficaz para a superação de crises como a atual, e outras que certamente virão?
“Uma coordenação de políticas macroeconômicas nacionais só é possível em duas circunstâncias: identidade de objetivos entre os líderes nacionais ou hegemonia de um país sobre o resto do grupo, que lhe permita impor suas próprias soluções sobre o coletivo”, disse ao Valor o economista Fernando Cardim de Carvalho. “A primeira circunstância é, fundamentalmente, uma utopia. Mesmo quando enfrentam problemas comuns, como no caso de uma crise global como a que a economia mundial vive desde 2008, cada país tenta sair dela por si mesmo, inclusive ao preço de impor problemas adicionais aos vizinhos. Isso ocorreu, por exemplo, na década de 1930, quando a política cambial serviu de instrumento para exportação de desemprego, através da imposição de desvalorizações cambiais unilaterais que visavam aumentar exportações e cortar importações, no que ficou conhecido como a política de tornar seu vizinho um mendigo (“beggar thy neighbor”). Bretton Woods foi um exemplo da segunda circunstância. A hegemonia dos Estados Unidos, país vitorioso entre os vitoriosos da Segunda Guerra, era indisputada e permitiu à delegação americana ditar as regras do acordo que foi assinado em 1944.”
Fonte: aqui
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