Marcelo de Paiva Abreu*
O Estado de São Paulo, segunda-feira, 6.8.2012
O governo brasileiro vem insistindo na importância de que desalinhamentos cambiais sejam discutidos na Organização Mundial de Comércio (OMC). E mais, que sejam criados mecanismos na OMC que permitam ajuste das tarifas para levar em conta flutuações cambiais que distorcem a competitividade da produção doméstica em relação às importações. O diagnóstico que conduziu a essa iniciativa é incompleto e a escolha de foro para encaminhar a questão é pouco realista.
A preocupação com o aumento da penetração das importações em consequência da apreciação cambial é legítima, mas é preciso abandonar o hábito de transferir a culpa ao estrangeiro. Como ocorre quase sempre, não há só culpados ou inocentes.
Importações são determinadas pelo nível de atividade no Brasil e pela competitividade dos produtos brasileiros em relação aos importados. O custo das importações é resultado da interação dos preços internacionais, da taxa de câmbio e da taxação das importações. O custo da produção doméstica competitiva é o que atende pela alcunha de custo Brasil, tem a ver com salários, carga tributária, logística, em suma, os elementos de custo relevantes no Brasil.
Em circunstâncias normais, os preços das importações brasileiras denominados em moeda estrangeira poderiam ser considerados como dados, em vista do tamanho do mercado brasileiro em relação ao mercado mundial. No mundo atual, esses preços podem estar deprimidos pelas políticas macroeconômicas dos EUA e da China que levam à desvalorização "artificial" das respectivas moedas.
Além disso, o custo das importações em reais é definido pela taxação das importações e pela taxa cambial brasileira. Até as recentes decisões do governo, ao arrepio da OMC, quanto ao tratamento fiscal discriminatório das importações na incidência do IPI, a taxação relevante consistia nas tarifas efetivamente praticadas. Agora, enquanto a OMC não reclamar, deve ser levado também em conta o diferencial de IPI entre produtos importados e produtos competitivos produzidos domesticamente.
O nível da taxa cambial brasileira depende de políticas adotadas no Brasil e pelos principais parceiros do Brasil. A manutenção da taxa de juros num nível extremamente baixo, especialmente pelos EUA, quando combinada a taxa de juros alta, como no Brasil, atrai capitais e resulta em apreciação cambial no Brasil. A variável relevante é o diferencial de juros: se o Brasil pudesse continuar a reduzir a taxa de referência que remunera os títulos públicos, as pressões provocadas pelas distorções geradas pelas políticas macroeconômicas de seus parceiros seriam minoradas.
Em vez de insistir em estratégia com parcas possibilidades de influir nos processos decisórios relevantes, o governo brasileiro poderia minorar os danos causados por tais políticas com o uso de instrumentos sobre os quais, em princípio, tem controle. A pressão dos gastos públicos gera obstáculos à redução da taxa de juros de referência. O governo deveria contrariar a sua natureza e encontrar apetite para tratar prioritariamente da explosiva questão de gastos públicos.
A outra frente relevante é a redução do custo Brasil. O governo, paralisado na sua capacidade de investir, tem tentado remendar essa situação por meio de desonerações fiscais discricionárias. Mas trata das reformas estruturais que poderiam contribuir para reduzir tais custos em bases permanentes como se fossem parte de agenda "neoliberal" a ser exorcizada.
Economistas do Antigo Regime, que agora se destacam como assessores proeminentes, têm contribuído para semear a confusão quanto aos possíveis remédios para os males que assolam a competitividade da indústria brasileira, ao atrelar indevidamente o diagnóstico das distorções cambiais à proposta de remédios na OMC.
Poucos discordariam de que a perda de competitividade da indústria brasileira se deve, em parte, às manipulações cambiais de concorrentes. Mas disso não decorre que o assunto deva ser tratado na OMC. É claro que os grandes manipuladores cambiais têm forte resistência em tratar do tema em qualquer foro, pois pretendem manter graus de liberdade que consideram necessários para tentar transferir o ônus de ajuste ao exterior, "empobrecer o vizinho". Mas será a OMC o foro adequado para tratar do assunto de forma eficaz? O corifeu do Antigo Regime acha que sim, embora há poucas semanas tenha sido irônico com os que "levam a OMC a sério".
Nem só "a mulher é volúvel e muda de tom e de julgamento como a pluma ao vento", como no Rigoletto de Verdi. De meu lado, creio que a OMC deve ser levada a sério e exatamente por isso, acreditando-se em especialização, a sua agenda não deve ser tumultuada com questões cambiais. Pressionar para que o FMI tenha postura mais eficaz quanto ao tema parece menos esdrúxulo, embora seja razoável manter também grande ceticismo quanto à possibilidade de progresso concreto. Pelo menos o assunto é compatível com a agenda da instituição. O governo brasileiro deveria fazer o dever de casa quanto ao custo Brasil e o controle do gasto público. E depender menos de desonerações discricionárias e jogadas de efeito nos foros multilaterais.
*Doutor em Econonomia pela Universidade de Cambridge, é professor titular no Departamento de Economia da PUC-Rio.
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