O acordo de Basileia II no Brasil vai permitir que os bancos utilizem modelos internos, na abordagem IRB avançada, que sirvam de base para o cálculo dos requisitos mínimos de capital em função do nível de exposição ao risco de crédito. Dentre os principais componentes estimados estão a probabilidade de descumprimento (PD – probability of default), a perda dado o descumprimento (LGD – loss given default) e a exposição no descumprimento (EAD – exposure at default). Este trabalho tem como objetivo investigar mecanismos de estimação de LGD utilizando modelos de regressão. Considerando que o mercado brasileiro ainda se encontra em um estágio incipiente na análise de LGD e a disponibilidade de dados de taxas de recuperação é restrita, foram simulados portfólios de crédito através de técnicas de Monte Carlo. A dependência entre LGD e as variáveis explicativas das percentagens de perdas em caso de inadimplência é modelada através de cópulas gaussianas e de matrizes bi-estocásticas. Os resultados sugerem que a análise de regressão multivariada, usando diversas funções de transformação, possibilita identificar adequadamente as variáveis que explicam LGD.
A concessão de crédito é requisito essencial para o desenvolvimento de um país. Nos últimos anos, a oferta de crédito no Brasil tem aumentado de maneira significativa, influenciada por diversos fatores importantes, como a queda nas taxas de juros, o aumento do prazo médio das operações e a estabilidade econômica.
Segundo dados do Banco Central do Brasil (Bacen), o estoque total de empréstimos bancários no sistema financeiro em relação ao PIB passou de 31,6% em 2007 para 47,2% em 2010. Essa ampliação de recursos destinados à concessão de crédito causa também o aumento dos riscos e a necessidade de maior controle por parte das instituições financeiras e do regulador do mercado, o Bacen.
O Gráfico 1 mostra a Relação Crédito/PIB no Brasil e em outros países do mundo, em porcentagem, e indica que o Brasil ainda empresta pouco em relação a seu Produto Interno Bruto (PIB), comparando-se com países desenvolvidos como Espanha e Estados Unidos e com países emergentes como o Chile e a Malásia. Se a tendência de aumento do crédito atual for mantida, é possível que o Brasil alcance em alguns anos os níveis dos países com maior volume de financiamentos em relação ao PIB no mundo. Por isso, será cada vez mais importante para os bancos precificarem e gerenciarem o risco de crédito de maneira mais precisa, utilizando sistemas mais sofisticados de gestão. Já o Bacen deve estar apto a exigir requisitos mínimos de capital que consigam refletir o verdadeiro risco das carteiras de crédito dos bancos, seguindo diretrizes traçadas internacionalmente pelo Comitê de Basileia II e adaptando algumas regras para as especificidades do mercado brasileiro.
No Brasil, o Banco Central determinou, em 2004, através do comunicado nº 12.746, o cronograma de implementação de Basileia II, com previsão de encerramento no final de 2011. Em outubro de 2009 ocorreu a última atualização do cronograma, através do comunicado nº 19.028, e a previsão de encerramento do processo de implantação foi alterada para o final do primeiro semestre de 2013. Em fevereiro de 2011, o Bacen publicou o Edital de Audiência Pública nº 37, com as regras que devem fazer parte do documento final de Basileia II no Brasil e que irão reger o sistema bancário nacional.
O presente estudo pretende verificar o comportamento das perdas em carteiras de crédito simuladas com técnicas de Monte Carlo e, além disso, realizar estimativas de LGD utilizando dois diferentes modelos descritos na literatura e comparar os resultados obtidos por cada um deles. Os valores estimados de LGD são utilizados no cálculo do Capital Mínimo Exigido (CME), determinante do capital alocado pela instituição financeira, através dos modelos internos na abordagem IRB avançada. Dada a escassez de dados de perdas em carteiras de empréstimos disponíveis ao público, este estudo utiliza bases de dados simuladas com técnicas de Monte Carlo. Para a criação de dependência entre algumas variáveis explicativas aleatórias, foram utilizadas cópulas gaussianas e, no processo de junção das variáveis com as observações de LGD, foram utilizadas matrizes estocásticas duplas.
No procedimento utilizado, primeiramente os valores de LGD e das variáveis explicativas que compõem as bases de dados do estudo são simulados. Em seguida, essas bases são utilizadas para a realização de estimativas do parâmetro LGD através: (i) do modelo desenvolvido por Hamerle et al. e (ii) do LossCalc, da Moody’s KMV, descrito por Gupton e Stein. Finalmente, os resultados obtidos por cada modelo de estimação de LGD dentro dos portfólios de crédito resultantes das simulações serão comparados.
Este trabalho pode servir como base para as instituições financeiras analisarem e estimarem de forma mais precisa suas perdas de crédito e as eventuais recuperações incorridas em seus portfólios, utilizando a metodologia nele descrita e adaptando as informações e as variáveis do estudo pelos seus dados observados internamente. Além disso, o trabalho pode ser utilizado pelos bancos com poucas observações de perdas na simulação de portfólios de crédito fictícios.
Em resumo, a metodologia se baseia em três etapas principais: (i) desenvolvimento de portfólios de crédito utilizando simulação de Monte Carlo, cada um contendo 10.000 observações de LGD, que são formadas pela junção de duas variáveis com distribuição Beta, uma com assimetria à direita e outra com assimetria à esquerda, e 10.000 observações de quatro variáveis explicativas de clientes inadimplentes, sendo duas delas seguindo uma distribuição Beta, uma com distribuição normal e uma com distribuição de Bernoulli; (ii) realização de estimativas de LGD das carteiras simuladas, utilizando dois modelos descritos na literatura e (iii) comparação dos resultados obtidos com a aplicação dos dois modelos de estimação de LGD.
Mais especificamente, a simulação de dados envolve (i) o uso de cópulas gaussianas para a modelagem de dependência entre as variáveis explicativas associadas à inadimplência e (ii) o confronto entre percentis da variável LGD e das variáveis independentes levando-se em consideração uma matriz bi-estocástica como referência. A estimação do modelo de LGD através dos dados gerados por simulação de Monte Carlo é realizada usando-se regressão linear múltipla.
As cópulas gaussianas são geradas a partir da correlação entre as variáveis explicativas. Dentro do estudo, foram utilizados quatro conjuntos de correlações diferentes na simulação das carteiras de crédito, e verificou-se que não houve impacto significativo nos resultados das regressões dependendo da correlação utilizada.
A simulação de dados é fundamental no desenvolvimento deste trabalho, dadas as dificuldades na obtenção de dados reais de LGD em carteiras de crédito no Brasil. Desta forma, o presente estudo deve resultar em uma ferramenta teórica importante de análise de carteiras para as instituições financeiras, que serão capazes de controlar melhor suas perdas esperadas e inesperadas, seguindo também as diretrizes do acordo de Basileia II e do Bacen. A metodologia desenvolvida pode ser utilizada por instituições financeiras que desejem realizar estimativas de LGD para verificar quais variáveis impactam nas perdas em seus portfólios de crédito.
Depois de simuladas as bases de dados, foram utilizados no estudo dois modelos descritos na literatura, que são apresentados a seguir.
Modelo Logit
Uma vez que a LGD é expressa de forma percentual, variando entre 0 e 1, não é possível realizar estimativas diretamente através de regressão linear. Assim, é necessário seguir um procedimento de transformação do tipo Logit nas observações de LGD da base de dados de desenvolvimento para então realizar estimativas através de regressão linear e obter os coeficientes de cada variável transformada. Em seguida, utilizando os coeficientes obtidos na regressão, são estimados os valores que serão posteriormente transformados em observações de LGD através da função inversa utilizada no início do procedimento.
Nos dados deste trabalho, são realizadas regressões lineares dos parâmetros explicativos que foram simulados contra os valores transformados das observações de LGD, utilizando-se o método dos mínimos quadrados ordinários.
Modelo LossCalc, da Moody’s KMV
O LossCalc é um sistema desenvolvido pela Moody’s KMV que considera a taxa de recuperação no momento da inadimplência como uma variável estocástica independente da PD e igual a 1 – LGD. É utilizado por investidores e instituições financeiras nas estimativas de LGD para eventos de inadimplência ocorridos imediatamente ou que venham a ocorrer dentro de um ano.
Partindo das observações de LGD nas bases de dados simuladas, criadas através da combinação de duas variáveis com distribuição Beta, característica bimodal e que variam entre 0 e 1, é necessário realizar uma transformação Beta para deixar a variável dependente normalmente distribuída e utilizar, assim, uma regressão linear na estimativa dos coeficientes apropriados dos fatores preditivos, tendo como variável dependente o valor transformado de LGD. Depois de estimados os valores de LGD no “espaço normal”, aplica-se a transformada inversa para levar estes valores ao “espaço de LGD”, resultando nas estimativas de LGD para cada exposição de crédito.
Novamente, foi utilizado o método dos mínimos quadrados ordinários na regressão linear dos parâmetros explicativos contra os valores transformados de LGD.
Resultados e comentários finais
Os resultados das regressões lineares indicam que o modelo de Hamerle et al., que utiliza a transformação do tipo Logit, em comparação ao LossCalc, com a transformação Beta, foi o que teve a melhor qualidade no ajuste à linha de regressão, ou o maior valor de R2, em todas as bases de dados simuladas neste estudo, independentemente da correlação utilizada entre as variáveis explicativas. A Figura 1 (Histograma das variáveis simuladas no estudo) apresenta a distribuição das variáveis dependentes e independentes simuladas em uma das bases de dados utilizadas.
Algumas limitações da metodologia de simulação podem ser elencadas, como, por exemplo, o alto ajuste observado dos modelos em relação à reta de regressão, devido ao tipo de construção das bases utilizado. Como sugestão, as combinações entre as variáveis explicativas e LGD poderiam ser feitas por outros métodos em vez da matriz estocástica dupla utilizada. Outra limitação é a não avaliação da acurácia e do desempenho dos modelos de previsão em testes fora-da-amostra e fora-do-tempo, devido à utilização de bases de dados simuladas.
Para a criação de dependência, uma sugestão em trabalhos futuros semelhantes seria a utilização de relações não-lineares entre as variáveis explicativas, ou seja, a criação de cópulas não gaussianas, visto que em dados reais é provável que as relações existentes entre as variáveis não sejam lineares. Outra sugestão seria a utilização da metodologia descrita em bases de dados reais de instituições financeiras com muitas ou poucas operações inadimplentes, para verificar o comportamento de variáveis não simuladas nas estimativas de perdas em portfólios de crédito. Adicionalmente, outras técnicas de estimação podem ser investigadas, em substituição à análise de regressão linear múltipla utilizada no presente estudo.
Finalmente, as instituições financeiras podem utilizar esse trabalho como base metodológica para sua gestão de risco de crédito, visto que ele apresenta importantes ferramentas de simulações de dados e, ao mesmo tempo, propõe modelos que podem ser utilizados na mensuração das perdas em portfólios de crédito. Além disso, os bancos seriam capazes de estimar de forma mais precisa a LGD de suas carteiras, parâmetro essencial no cálculo dos requisitos mínimos de capital, na abordagem IRB avançada, seguindo as diretrizes do acordo de Basileia II e as regras definidas pelo Bacen.
Fonte: Valor
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