O bem mais valioso de nossa época não é o diamante nem o petróleo, a fórmula da Coca-Cola ou o sorriso da Natalie Portman: é o tempo. Obedecendo à lei da oferta e da procura, quanto mais escasso ele fica, mais caro nos é. A seca temporal é geral e irrestrita, tão democrática quanto a calvície, a saudade e a morte: eu não tenho tempo, você não tem tempo, o Eike Batista não tem tempo, o cara que está vendendo bala no farol, em agônica marcha atlética para recolher os saquinhos dos retrovisores, antes que se abra o sinal, também não tem.
Como vocês devem saber, o principal sintoma dessa doença crônica – sem trocadilho – é a ansiedade. Toda manhã, flagro-me aflito, escovando os dentes, com pressa. Vejo-me batendo os pés no hall, enquanto o elevador não chega. Até o segundo que o cursor do celular leva para piscar, num SMS, permitindo-me digitar outra letra da mesma tecla, deixa-me exasperado.
Antigamente, não era assim. Na minha infância, os dias tinham 30 horas, alguns chegando mesmo a 40, se bem me lembro. Não, não é que eu faça hoje mais coisas do que antes. Já pensei nisso. Mas veja só quantas obrigações eu tinha no passado: cinco horas na escola, lição de casa, inglês, bateria, natação, jantar com os pais toda noite, sem contar os séculos, ao vivo ou ao telefone, tentando convencer alguma menina a beijar-me na boca... E, mesmo assim, ainda sobravam infinitos latifúndios improdutivos, impossíveis de se ocupar, por mais que assistisse à televisão, tirasse cochilos vespertinos, lesse livros, fosse às casas dos amigos jogar videogame, falar mal dos outros ou simplesmente juntar nossos tédios, olhar as paredes e escutar o tic-tac dos relógios.
Das duas, uma: ou as horas eram mais abundantes do que hoje, ou então tinham uma incrível capacidade regenerativa, que perderam. A a cada duas ou três horas mortas, uma nova hora nascia, fresquinha, como as células de uma pele jovem.
Acho que foi lá pelo ano 2000 que o dia começou a encolher, chegando a essas míseras 24 horas – com sensação térmica de 16. Talvez tenha sido este o verdadeiro bug do milênio: na virada de 1999 para 2000, todos os ponteiros, vendo-se livres do velho milênio e admirando o vazio que se abria adiante, como um retão num circuito de F 1, resolveram meter os pés no acelerador, de modo que acabamos assim, espremidos entre prazeres e obrigações, aflitos, escovando os dentes com pressa, andando em círculos no hall do elevador.
Há quem diga que a culpa é da melhora das comunicações e, consequentemente, do envio de dados. Com a informação viajando tão rápido, saprendemos a arte da espera. Antigamente, aguardar era normal. Estávamos sempre esperando alguma coisa chegar. Uma carta pelo correio. Um disco do exterior. Uma foto, um texto ou um documento, via portador. Estes hiatos eram tidos como normais, uma brecha saudável, pausa para o cigarro ou o café, a prosa, a leitura de uma revista, o devaneio, a conversa na janela, a morte da bezerra. Hoje não. Tá tudo aqui e, se não está, nos afligimos. Queremos o pássaro na mão. E os dois voando. Por que ainda não trouxeram esses dois que estão no céu, diabo?! Já não era melhor ter pegado logo os três, de uma vez, otimizando custos e esforços?
Enquanto não descobrimos a cura para esse mal, a única saída é aprender a lidar com ele. Há que se cercar com muros altos certas horas do relógio para que nada as possa roubar de nós. Fazer diques de pedra em torno da hora de ficar com nosso amor, da hora de trabalhar no projeto pessoal, da hora do esporte, de ler um livro, encontrar um amigo. Mesmo assim, vira e mexe, vêm as obrigações como um tsunami, ou os eventos sociais como meteoros, e derrubam as barragens. Não há nada a se fazer senão reconstruir os muros ainda mais fortes do que antes.
Você sente a mesma coisa, ou sou só eu? Talvez seja só eu. Quem sabe, numa manhã de terça-feira, lá por 1998, eu tenha perdido a hora para nunca mais encontrá-la? Ficarei assim, 30 minutos atrás do resto do mundo, tentando alcançá-lo, ininterruptamente, como quem corre atrás de um trem, até o fim dos tempos. Será que foi isso?
Postado por Isabel Sales. Crônica de Antônio Prata
Fonte: Aqui
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