A proposta de um novo Código Comercial, objeto de recentes notícias e de audiência pública na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, tem recebido apoio público de importantes entidades, juristas e lideranças políticas. Um novo Código, porém, afetará a jurisprudência e práticas de mercado já firmadas com base no Código Civil, Lei das Sociedades por Ações e outras leis. Com isso, poderá prejudicar a segurança jurídica.A proposta é bem intencionada e suas motivações relevantes. De fato, o direito civil e comercial são distintos e sua união formal no Código Civil resultou tecnicamente deficiente. O Código Civil é incompleto, imperfeito e, em certos aspectos, anacrônico. Por exemplo, regula as sociedades limitadas de forma complexa e conflituosa com outros tipos societários. Há ainda excessivas leis esparsas em matéria de direito comercial, cuja compreensão sistemática é dificultosa.
Os objetivos de um novo Código Comercial, segundo seus apoiadores, seriam consolidar normas esparsas, atualizar e corrigir disposições vigentes, proporcionar maior segurança jurídica e, com isso, atrair investimentos e fomentar o desenvolvimento da economia e do país. O novo Código Comercial também seria instrumento para provocar reflexão da sociedade civil sobre a legislação comercial e estimular a produção doutrinária e jurisprudencial.
É questionável se um novo Código Comercial atingiria adequadamente todos esses objetivos. O aperfeiçoamento das normas vigentes é necessário, mas seria melhor realizado mediante mudanças pontuais na legislação ou, eventualmente, consolidação de leis num único diploma, preservando-se o conteúdo normativo original. Nada impede que a necessária reflexão da sociedade civil sobre a legislação comercial expresse-se dessa forma.
Tramita na Câmara dos Deputados, por exemplo, o Projeto de Lei (PL) nº 118, de 2007, que já propõe alterações a artigos do Código Civil relativos às sociedades e pode ser aprimorado no seu curso legislativo. Sem aqui analisá-lo, o PL nº 18, de 2011, que cria a empresa individual de responsabilidade limitada, foi aprovado e encaminhado, em 20 de junho, para sanção presidencial. A Lei nº 12.431, em vigor desde 27 de junho, modificou a Lei das Sociedades por Ações no que se refere, entre outras matérias, a debêntures e a participação à distância de acionistas em assembleias gerais de companhias abertas. Já em relação a consolidação de leis, há esforços dessa natureza em matérias de saúde, assistência e seguridade social, sob os PL nº 4.247, de 2008, nº 3.800, de 2008, e nº 7.078, de 2002.
Bem ou mal, o Código Civil, promulgado apenas em 2002 e cujo projeto tramitou por 26 anos no Congresso Nacional, trouxe inovações ao direito comercial já interpretadas pelo Departamento Nacional de Registro do Comércio e doutrina, e absorvidas pelas práticas de mercado. A Lei das Sociedades por Ações, de 1976, é bem redigida e serve de base para valiosa e extensa jurisprudência e regulamentação pela Comissão de Valores Mobiliários. A Lei nº 11.101, de 2005, que trata de recuperação judicial, extrajudicial e falência, representou um importante avanço, e é objeto de esforços interpretativos pelo Poder Judiciário, os quais apenas começam a aclarar sua aplicação.
O argumento de que um novo código proporcionaria maior segurança jurídica e, por consequência, atrairia investimentos, é questionável. Embora no Brasil o direito tenha origem em legislação, a jurisprudência e a regulamentação servem para interpretá-la, afastar dúvidas e dar-lhe contornos mais concretos, o que exige tempo e sucessivos testes de casos concretos. A boa aplicação da legislação, mediante procedimentos judiciais, arbitrais ou administrativos ágeis e de resultado razoavelmente previsível favorece a segurança jurídica de forma mais determinante que a redação das leis e códigos.
Evidentemente, a produção jurisprudencial deve evoluir constantemente com base nos reclamos da sociedade e correspondentes inovações legislativas. A legislação deve ser ponto de partida adequado, e o esforço de melhorar sua qualidade e coerência é válido. Porém, a jurisprudência não deve ser reinaugurada por efeito de amplas e frequentes reformas legislativas. Do ponto de vista prático, a legislação imperfeita, se suficientemente compreendida e aplicada de forma minimamente consistente pelas autoridades competentes, pode ser melhor que a nova e abrangente legislação.
O advento de um novo Código Comercial lançará novas dúvidas sobre questões de direito comercial tratadas, ainda que imperfeitamente, em lei, e hoje em avançado processo de amadurecimento e compreensão por empresários, advogados e autoridades. Reformar toda a legislação comercial e submetê-la a novos testes interpretativos poderá representar um retrocesso. Há risco de um novo Código Comercial agravar a segurança jurídica no Brasil e, assim, atingir o efeito inverso do pretendido.
Fonte: Marcelo Perlman e Michel Sancovski -Valor Econômico
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário