Este texto apresenta importante discussão sobre o novo Código Comercial:
Vem sendo divulgado que estaria em gestação um novo Código Comercial, criando-se na Câmara dos Deputados, uma comissão especial para cuidar de sua tramitação. O defensor público da ideia, o jurista Fábio Ulhoa Coelho, Professor Titular de Direito Comercial da PUC-SP, publicou recentemente a obra "O Futuro do Direito Comercial", na qual minuta um Anteprojeto de Código. As linhas que seguem visam a estimular o debate sobre o tema, reconhecendo a seriedade da iniciativa e o rigor acadêmico de seu proponente.
Tenho dúvidas sobre a necessidade e pertinência de um "novo" Código Comercial. A noção totalizante de Código não estará superada pela emergência de leis especiais e sua regulamentação administrativa, "micro-modelos" jurídicos maleáveis e adequados às atividades que disciplinam?
Se tenho dúvidas sobre o modelo mais adequado à regulação da atividade empresarial - se o codificado ou se o multifacetado e aberto - estou firmemente convicto de que incluir a disciplina das sociedades por ações no Código Comercial seria manifesto equívoco, capaz de gerar efeitos desastrosos.
A vigente Lei das S/A (Lei 6.404/76) resultou de Projeto elaborado pelos juristas Alfredo Lamy Filho e José Luiz Bulhões Pedreira, amplamente discutido com a sociedade e no Congresso Nacional. É absolutamente consensual entre os advogados e empresários que se trata de lei tão boa e atual que seguidamente "descobrimos", ao ler com mais cuidado seus dispositivos, novas possibilidades de sua aplicação aos casos concretos com que nos deparamos na prática do direito societário.
Ademais, a Lei das S/A constitui um magnífico sistema de ordenação das companhias, fruto da experiência prática e conhecimento teórico dos redatores do Projeto. O conceito de "sistema", desde sua origem grega, significa o composto, a totalidade construída, integrada por várias partes necessariamente ordenadas e interligadas. O ordenamento contido na Lei das S/A é tão sistemático que permite a sua interpretação "por dentro", mediante a análise conjunta de seus dispositivos, para depois aplicá-los aos fatos. Ademais, resistiu a "provas de fogo", sem ter sua estrutura lógica abalada, como foram as reformas tópicas e mal redigidas realizadas em 1989, 1997 e 2001. Foi enriquecida nos últimos anos com as modificações no tratamento das demonstrações contábeis, adequadamente regulamentadas pela CVM. Agora, mediante MP, pequenos ajustes estéticos ajudarão a manter sua atualidade, agilizando o processo de emissão de debêntures e permitindo a realização de assembleias de acionistas virtuais.
Se assim é, por que incluir a disciplina das companhias no Código? Ora, a Lei das S/A já contém os valores essenciais à regulação das companhias, sedimentados pela doutrina, jurisprudência e prática dos negócios: a sua legítima finalidade lucrativa; a limitação da responsabilidade dos acionistas; o princípio majoritário; a tutela de direitos essenciais dos acionistas minoritários; os deveres fiduciários do acionista controlador e dos administradores; o regime da transparência das informações.
Não me parece razoável simplesmente "transportar" as disposições da Lei 6.404/76 para dentro de um Código em nome de sua completude. Primeiro porque grande seria a tentação dos legisladores de modificar alguns de seus artigos, com resultados imprevisíveis. Segundo, porque, ainda que nada de sua substância fosse modificado, seus artigos seriam renumerados, sairiam do lugar, mudariam de seção ou capítulo, tudo a dificultar a vida dos que a consultam. Ora, uma boa lei é um bem público, como um parque, para ser usada pelos destinatários. Para que mudar os bancos e as árvores de lugar, se os usuários já sabem onde encontrá-los e como desfrutar de seus benefícios? Tratar no Código só das companhias fechadas e deixar a vigente Lei das S/A cuidando das abertas, ou, pior ainda, incumbir a CVM, já tão assoberbada, de toda a sua regulação, não faria o menor sentido, seria mutilar um sistema bem estruturado sem qualquer utilidade prática.
Em "O Círculo dos Mentirosos", Jean-Claude Carrière conta a seguinte história do pícaro personagem Nasreddin Hodja, habitante de algum país do Oriente Médio: um dia, estando ele a cercar sua casa com miolos de pão, um homem que passava perguntou a razão dessa inusitada prática, ao que ele respondeu: - Protege-me dos tigres. - Mas não há tigres aqui. - Então, você está vendo como funciona bem!
Esperemos, para o bem de nosso direito societário, que a ameaça de inclusão da Lei das S/A no Anteprojeto de Código Comercial seja como os imaginários tigres de Hodja.
Fonte: Nelson Eizirik - Estado de São Paulo
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário