A indústria farmacêutica não só financiou pesquisas como também ajudou a construir a ciência em torno de uma suposta nova condição, chamada “disfunção sexual feminina”, como forma de criar um mercado para novos remédios, afirma artigo publicado na edição desta semana da revista “British Medical Journal” (BMJ).
Em pesquisas para seu novo livro, “Sex, lies and pharmaceuticals” (“Sexo, mentiras e a indústria farmacêutica”, em tradução livre), Ray Moynihan, da Universidade de Newcastle, na Austrália, descobriu que funcionários de laboratórios trabalharam junto com formadores de opinião pagos para desenvolverem um perfil para a doença, além de terem realizado estudos para mostrá-la como generalizada e criado ferramentas diagnósticas para convencer mulheres de que suas dificuldades sexuais tinham rotulação médica que precisavam de tratamento.
— O marketing farmacêutico está se unindo à ciência médica de uma forma fascinante e assustadora que nos faz pensar se não devemos buscar uma nova maneira de definir as doenças — afirma ele, que cita uma funcionária como tendo dito que sua companhia estava interessada em “apressar o desenvolvimento de uma doença” por meio do financiamento de levantamentos que mostrassem que o problema era comum e poderia ser classificado como uma “desordem do desejo sexual hipoativo”.
Pesquisas a serviço dos laboratórios
Segundo Moynihan, muitos dos pesquisadores envolvidos ou eram empregados dos laboratórios farmacêuticos ou tinham ligações financeiras com a indústria. Enquanto isso, estudos conduzidos sem o envolvimento das empresas colocavam em dúvida a existência do distúrbio. Apesar disso, as companhias lideraram uma campanha para “informar” tanto os profissionais quanto o público em geral sobre a condição.
O laboratório Pfizer, por exemplo, financiou um curso para médicos de todo os EUA no qual afirmava que 63% das mulheres sofriam com disfunções sexuais e que o uso de testosterona associada com o sildenafil (princípio ativo de sua droga Viagra) e terapia comportamental poderiam ajudar a “curá-las”. Já a alemã Boehringer Ingelheim acelerou “atividades educacionais” enquanto planejava o lançamento, este ano, de sua “droga do desejo”, o antidepressivo flibaserin. Em junho, no entanto, o flibaserin acabou rejeitado por conselheiros da FDA, agência que controla medicamentos e alimentos nos EUA, que também desaconselhou o uso do sildenafil após estudos mostrarem que seus efeitos não eram muito diferentes dos de um placebo.
Mesmo assim, alerta o autor, “a estrutura das evidências científicas sobre a condição ainda está presente, criando a impressão de que há enorme demanda reprimida por tratamentos” e, com novos remédios ainda em fase experimental, “a indústria farmacêutica não dá sinais de ter abandonado seus planos de suprir esta demanda que ela mesma ajudou a criar”.
— Frente a uma mulher aos prantos porque sua libido desapareceu e por isso está apavorada com a possibilidade de perder seu parceiro, os médicos podem sentir uma imensa pressão para apresentar uma solução imediata e efetiva — diz Sandy Goldbeck-Wood, especialista em medicina psicossexual em texto-comentário que acompanha o artigo na “BMJ”.
Segundo ela, a pesquisa de Moynihan demonstra tanto os conflitos de interesse quanto a falta de provas de que os problemas sexuais femininos podem ser resolvidos farmacologicamente. Ainda assim, Goldbeck-Wood considera que o argumento do autor de que “a disfunção sexual feminina é uma doença construída por médicos sob a influência das companhias farmacêuticas não vai convencer clínicos e pacientes”, pois as mulheres que conseguiram superar as barreiras psicológicas e sociais em busca de ajuda não vão aceitar terem sido “abandonadas”.
Para Moynihan, porém, é preciso antes de tudo reavaliar a forma como a comunidade médica define síndromes comuns e recomenda tratamentos.
— No mercado da medicina, as idas e vindas normais da vida estão sendo transformadas em doenças lucrativas, como disfunção sexual, bexiga hiperativa e desordem de atenção adulta, enquanto pequenos aumentos nos riscos de doenças futuras estão sendo apresentados como pré-condições cada vez mais amplas — enumera. — O padrão é claro: formadores de opinião ligados a empresas que vendem soluções se encontram para revisar e refinar as definições destas condições, para as quais, então, tratamentos são agressivamente promovidos.
Sexo, mentiras e remédios - 1 Out 2010 - O Globo
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