'Insider' da Sadia vira ação criminal
Valor Econômico - 7/5/2009
Não é como nos Estados Unidos, onde o executivo de um banco sai algemado da mesa de operações por uso de informação privilegiada. Mas já é um marco na história do mercado de capitais brasileiro o Ministério Público Federal (MPF) de São Paulo ter apresentado ontem a primeira denúncia por crime de informação privilegiada ("insider trading") do país. O pedido de abertura de ação penal envolve o caso da oferta da Sadia para a compra da Perdigão, anunciada em 16 de julho de 2006. O uso de informação privilegiada passou a ser crime no Brasil em 2001, com a revisão da Lei 6.385, que regula o mercado de capitais, mas é a primeira vez que ela é aplicada.
Na ação, o ex-diretor financeiro da Sadia Luiz Gonzaga Murat Júnior, o ex-conselheiro da empresa Romano Ancelmo Fontana Filho e o ex-superintendente executivo de empréstimos estruturados do ABN Amro Bank Alexandre Ponzio de Azevedo, que assessorava a operação, são acusados de terem tirado proveito das informações sigilosas que tinham sobre a oferta comprando e vendendo recibos de ações (ADRs) das empresas nos Estados Unidos. Murat teria lucrado, segundo o MPF, US$ 58,5 mil (R$ 123 mil), Fontana Filho, US$ 139 mil (R$ 295 mil) e Azevedo, US$ 51,6 mil (R$ 109 mil).
Todos já responderam a processos na esfera administrativa - na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e também na similar americana, a Securities and Exchange Commission (SEC). Nos Estados Unidos, Murat e Azevedo fizeram acordos, pagando pesadas multas para cancelar as ações. Já no Brasil, Fontana Filho e Murat foram inabilitados a exercer cargos de administrador e de conselheiro fiscal de empresas abertas por cinco anos. Murat recorreu ao Conselho Federal de Recursos do Sistema Financeiro, o Conselhinho. Já Azevedo fez um acordo com a CVM para encerrar o caso, pagando uma multa de R$ 238 mil. A novidade é que, independentemente disso, agora eles terão de responder pelo crime de "insider trading", que prevê penas que vão de um a cinco anos de prisão.
Apesar de as operações que caracterizaram o uso de informação privilegiada terem sido feitas nos Estados Unidos, o crime foi cometido no Brasil, explica o procurador da República Rodrigo de Grandis, responsável pelo pedido de abertura de processo. "As ordens de compra e venda para as corretoras nos EUA foram dadas aqui no Brasil", diz.
Segundo de Grandis, o processo começou quando a SEC avisou a CVM brasileira das operações irregulares, em meados de 2006. Houve então o início do processo administrativo na CVM brasileira, que comunicou o Ministério Público Federal. Por ser a primeira ação desse tipo no país, de Grandis teve de realizar, com as investigações, um extenso trabalho de pesquisa sobre a legislação de casos de "insider" em outros países, que começou no fim de 2007 e terminou apenas agora.
Foram ouvidas testemunhas que acompanhavam as negociações para a formulação da proposta da Sadia, entre elas o então presidente do ABN Amro no Brasil, Fábio Barbosa, e o ex-presidente do conselho da Sadia, Walter Fontana Filho.
Segundo de Grandis, nenhum dos acusados negou as operações de compra e venda de ações, mas cada um apresentou argumentos diferentes para justificá-las. Romano Fontana Filho disse, por exemplo, que entendia que só haveria crime de "insider" se a operação com ações fosse feita no Brasil. "Concluímos, com os depoimentos e as testemunhas, que houve prática de crime de 'insider'", diz de Grandis.
O procurador admite que o processo poderá enfrentar alguma dificuldade no Judiciário, por ser o primeiro a tratar do crime. "Não será um processo fácil pelo seu ineditismo, mas está muito bem fundamentado e será importante até para provocar o Judiciário e os meios acadêmicos sobre essa questão fundamental para o mercado de capitais", diz. Segundo de Grandis, é importante mostrar que o uso de informação privilegiada no país é punido não só no âmbito administrativo, mas penal também.
Dos três acusados, a situação mais complicada é a de Fontana Filho, que fez quatro operações com ações e, por isso, responde por quatro crimes de insider, avalia de Grandis. Já Murat responde por dois crimes e Azevedo, por um. O ex-executivo do ABN poderá inclusive pedir a suspensão condicional do processo, o que poderá levar ao cancelamento da ação. Os demais ficarão sujeitos às penas de um a cinco anos.
O Valor procurou os três acusados. Murat, que hoje é diretor financeiro da trading de grãos Multigrain, companhia de agronegócios com sede na Suíça e que tem entre seus principais sócios a japonesa Mitsui e o grupo americano CHS, não quis falar sobre o assunto. "Prefiro não fazer comentários", disse, por telefone. Já Azevedo, que chegou a trabalhar para gestores de fundos e empresas, não foi localizado. Fontana Filho, segundo pessoas ligadas à família, estaria nos Estados Unidos, onde vive sua filha.
A primeira denúncia por crime de "insider" é um fator histórico para o mercado de capitais brasileiro, diz Alexandre Pinheiro dos Santos, procurador-chefe da Procuradoria Federal Especializada junto à CVM. A medida mostra também a sintonia dos órgãos reguladores brasileiros com outros países, afirma Santos, lembrando que recentemente a Grã-Bretanha anunciou a primeira condenação por crime de "insider information".
Santos destaca ainda o trabalho conjunto entre a SEC e a CVM, e da autarquia brasileira com o Ministério Público Federal. Essa colaboração com o MPF, oficializada em 2007, existiu em outros casos de "insider", como os que ocorreram nas operações de compra da Ipiranga por Petrobras, Ultra e Braskem e na venda da Suzano Petroquímica, e que podem terminar também em ações criminais. "Mas isso depende da avaliação do Ministério Público para cada caso." De Grandis sugeriu que a CVM seja assistente na acusação aos envolvidos no caso da Sadia.
Mais que o caso específico, Santos chama a atenção para a importância da ação para manter a confiança da comunidade de investidores no mercado de ações. (Colaboraram Graziella Valenti, Alda do Amaral Rocha e Catherine Vieira, do Rio)
07 maio 2009
Informação privilegiada
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