Uma análise sobre a proposta de mudança no orçamento público, com um orçamento impositivo. Tema da coluna de Ribamar Oliveira no Estadão de hoje:
Mudança incompleta
O envolvimento de mais de 100 parlamentares e de assessores ministeriais na compra superfaturada de ambulâncias coloca sob suspeita a elaboração, a execução e a fiscalização do Orçamento da União. O que se viu foi um conluio que envolveu prefeitos, deputados, senadores, assessores de parlamentares e funcionários públicos, realizado durante cinco anos, sem que os órgãos de controle identificassem as irregularidades. Um esquema tão simples, que pode estar sendo usado para outras compras com dinheiro público federal.
No início deste mês, o Senado aprovou proposta de emenda constitucional (Pec) que torna obrigatória a execução do Orçamento como ele saiu do Congresso. Se passar pela Câmara, o orçamento não será mais autorizativo, mas impositivo. Ou seja, o governo será obrigado a executá-lo. Com as práticas orçamentárias atuais e com os controles existentes, o orçamento impositivo poderá significar a privatização do dinheiro público.
Cada parlamentar teve direito, este ano, a fazer emendas ao Orçamento até o montante de R$ 5 milhões. Eles destinaram esses recursos a pequenas obras em suas bases eleitorais, como a construção de uma ponte, de uma praça, ou a compra de ambulâncias. Além das emendas individuais, eles participaram também das coletivas, chamadas de emendas de bancada, que são os grandes investimentos no Estado ou região que representam. Se o parlamentar mal intencionado tiver certeza de que suas emendas serão executadas pelo governo, ficará ainda mais fácil para ele negociar antecipadamente com prefeitos e empresários, ou seja, montar esquemas fraudulentos.
O orçamento impositivo é o próximo passo da política fiscal brasileira, depois que as finanças públicas foram equilibradas e a cultura da responsabilidade fiscal foi fortalecida pela lei complementar 101, de 2000, também conhecida como Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Nas nações mais desenvolvidas, o Executivo cumpre o orçamento definido pelo Legislativo.
Hoje, a realidade brasileira é um pouco diferente. Por uma série de razões, entre elas a elevada inflação durante décadas, o Brasil desenvolveu uma cultura de indexação das verbas orçamentárias. Cada vez mais, as receitas foram sendo vinculadas a despesas específicas. Hoje, mais de 90% do orçamento já é impositivo por determinações constitucionais ou legais.
O orçamento deste ano prevê, como mostra a tabela abaixo, despesa primária total de R$ 407,1 bilhões. Esse valor inclui todos os gastos da União, menos as transferências constitucionais de receitas para Estados e municípios e as despesas financeiras, como o pagamento de juros das dívidas. Desse total, R$ 314,95 bilhões são despesas obrigatórias, como, por exemplo, o pagamento do funcionalismo, de benefícios previdenciários e outras.
O que sobra - R$ 92,1 bilhões - é usado para pagar as chamadas despesas discricionárias, ou seja, aquelas sobre as quais o governo tem algum poder de alterar ou reduzir. Mas existem dispositivos legais que tornam obrigatória parte dessas despesas, como é o caso dos gastos com a saúde e a educação, para citar os mais expressivos. Deduzidos esses gastos, o governo terá, efetivamente para cortar ou alterar, cerca de R$ 30 bilhões - ou seja, menos de 10% do total. Mas é nesses R$ 30 bilhões que estão os investimentos e as emendas dos parlamentares.
A Pec aprovada pelo Senado torna obrigatória a execução desses R$ 30 bilhões, ou seja, dos investimentos e das emendas dos parlamentares. A proposta cria uma figura esdrúxula que é o orçamento impositivo totalmente indexado. Por definição, um orçamento impositivo é aquele que tem suas prioridades e metas discutidas e votadas pelo Congresso a cada ano. Depois de aprovado, ele é executado integralmente pelo governo. Orçamento impositivo com vinculação de receitas não faz sentido, pois seria aceitar que o Congresso só discutirá o que será feito dos R$ 30 bilhões, ou seja, com a receita que não está vinculada.
Uma das preocupações do Senado, ao aprovar o orçamento impositivo, é a de acabar com a manipulação dos parlamentares pelo governo. É uma prática comum, na história republicana brasileira, o uso pelo governo da liberação das emendas como moeda de troca em votações consideradas importantes. Essa prática passou a ser um dos ingredientes para a formação da base de apoio do governo no Congresso.
A realização de uma reforma política, que permita ao presidente da República formar com maior facilidade a base de sustentação de seu governo, é condição indispensável para o orçamento impositivo. Além disso, é preciso melhorar os controles orçamentários. O primeiro deles é submeter a leilão eletrônico todas as compras feitas por Estados e municípios com recursos federais. Ao mesmo tempo, a movimentação do dinheiro repassado às prefeituras e governos estaduais deveria transitar pelo Siafi, conforme proposta discutida na Comissão Mista de Orçamento do Congresso, mas que foi rejeitada pelo governo.
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