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24 junho 2006

A arte de escrever difícil

Um belo texto publicado hoje (24/06) no Estado de S Paulo sobre a arte de escrever difícil:

O hábito de escrever e falar difícil

De onde vem o gosto pela incomunicabilidade? Vem de longe, mas hoje pelo menos os jornais primam pela expressão enxuta

Aluízio Falcão

A exposição sobre o nosso idioma e sua merecida repercussão trouxe para as salas de aulas e páginas de jornais um debate enriquecedor sobre o tema. Houve, na abertura do evento, reparos a imprecisões históricas em alguns de seus painéis, mas feitas num tom não construtivo que denunciava, antes do zelo, uma certa inveja dos formuladores. A exposição não sofreu com isso e despertou grande interesse da população.

Passado o impacto sobre a beleza da lusofonia, é preciso retomar a batalha por sua clareza. Até acho que todos os dicionários deviam ter na capa aquele aviso da propaganda de cerveja: use com moderação. A Língua Portuguesa precisa de um regime para emagrecer. Deve urgentemente perder celulites que agridem a decantada formosura do seu corpo. Perdão leitora, mas não há outro termo, somente celulite corresponde ao tenebroso vocábulo aleivosia, por exemplo, tão presente na oratória política e em alguns escritos que leio de vez em quando. Na tribuna, Suas Excelências querem afirmar que não admitem injúrias e acabam por dizer que não admitem aleivosias. Há outros recursos, talvez mais feios. Dizem "condutas deste jaez", quando poderiam dizer simplesmente "condutas desse tipo". Jaez, ínterim, encômio, vitupério, entrementes... a lista daria um dicionário. Um dicionário de sinônimos, provando que a cada palavra rebarbativa corresponde outra mais bonita e mais simples, de igual significado, que todo mundo entende. O problema é que falar difícil ainda confere status perante certas platéias. Ainda ontem, no restaurante, escutei um vizinho de mesa explicando qualquer coisa: "Esforço hercúleo..." A julgar pelo franzido nas testas de sua mulher e dos filhos, ninguém entendeu o hercúleo.

De onde vem esse gosto pela incomunicabilidade? Vem de longe, dos primeiros bacharéis. Não satisfeitos com os excessos em português, decoravam um latinório para rechear de sabedoria suas petições e recursos. Um amigo advogado, Núncio Nastari, divertiu-me com páginas e páginas dessas invocações. Pesquei algumas: est modus in rebus (cada caso é um caso); ad argumentandum tantum (apenas para argumentar); data venia (com o devido respeito); res nulius (coisa de ninguém); dura lex, sed lex (a lei é dura, mas é lei); pacta sunt servanda (os contratos devem ser respeitados); ad impossibilia nemo tenetur (ninguém é obrigado ao impossível); mutatis, mutandis (mudando o que deve ser mudado) e vai por aí a listagem do Núncio.

Ainda hoje tais preciosismos adornam os papéis jurídicos. Rui Barbosa foi um precursor. Profissionais de outras áreas também criaram jargões próprios, dificultando a compreensão de seus textos pelos outros mortais. Daí o "economês", o "sociologuês" e outros idiomas dentro do idioma.

Houve uma literatura de linguagem complicada, que parte da crítica endeusou exatamente pelos exageros formais, e não por seu conteúdo superior. Foi o caso de Os Sertões, do grande Euclides da Cunha, repleto de afetações que mais escondiam do que mostravam a genialidade do autor. Joaquim Nabuco, em seus Diários, registra que não agüentou ler os adjetivos de Euclides: (...) "Aqui a floresta impede também de ver as árvores. É um imenso cipoal; a pena do escritor parece-me mesmo um cipó dos mais rijos e dos mais enroscados. Tudo isso precisa ser arranjado por outro, ou de outra forma." E houve um excelente poeta brasileiro, Augusto dos Anjos, que se tornou famoso pelos seus piores versos, aqueles de linguajar rebarbativo: "Cosmopolitismo das moneras / pólipo de recônditas reentrâncias..."

Os jornais, que no passado imitavam a literatura pedante, hoje primam pela expressão enxuta, e com isso prestam importante serviço ao idioma. Inclusive quando incorporam uma linguagem que, pelo uso corrente na oralidade, adquirem o direito de ingressar na linguagem escrita. Machado de Assis defendia esse valor da espontaneidade. Escreveu, a propósito de vocábulos que pulam das ruas para o papel: (...) "Eles nascem como as plantas da terra. Não são flores artificiais de academias, pétalas de papelão recortadas em gabinetes nas quais o povo não pega. Ao contrário, as geradas naturalmente é que acabam entrando nas academias."

Os parnasianos contribuíram fartamente para difundir os palavrões. O termo é aqui usado para definir palavras solenes, cobertas de lantejoulas, que passeiam a sua pose nos sonetos. Mesmo aquele de Olavo Bilac sobre a Língua Portuguesa e que começa com "Última flor do Lácio, inculta e bela", merece reparos. Primeiro, porque o poeta imaginou que todos os seus leitores tinham a obrigação de saber que o Lácio era uma antiga região da Itália, onde primitivamente se falava o latim. Segundo, porque já no quarteto seguinte ele chama sua musa de "Tuba de alto clangor", parecendo insultá-la. Ainda bem que se redime dos excessos iniciais nos dois belos tercetos aqui transcritos em homenagem ao autor e ao nosso idioma:

"Amo o teu viço agreste e o teu aroma / De virgens selvas e de oceano largo! / Amo-te, ó rude e doloroso idioma, / Em que da voz materna ouvi: 'Meu filho!', / E em que Camões chorou, no exílio amargo, / O gênio sem ventura e o amor sem brilho!"

Sonetos, discursos e papéis jurídicos não foram os únicos a prejudicar a clareza do texto em português. É preciso lembrar as dissertações acadêmicas, especialmente aquelas da área de humanidades. Claro está que várias teses desta área contribuíram decisivamente para o avanço do conhecimento e a compreensão do Brasil. Mas houve outras, e também muitas, que vieram mais para complicar do que para explicar. Ainda bem que não saíram em livros. Esconderam-se, xerocadas, no escurinho das bibliotecas. Talvez com algum acanhamento de serem tão ininteligíveis e confusas.

Deixei para o fim, como nas estórias policiais, um culpado acima de qualquer suspeita. Ele goza de certa respeitabilidade e provavelmente não tem exata noção do mal que faz, em nome do bem. Estou me referindo ao gramático obsessivo, um guardião fundamentalista do idioma, que também age como carrasco da boa prosa. Não falo de bons e anônimos professores de português empenhados em difundir as boas normas nas escolas secundárias. Palmas para estes heróis obscuros que nem sempre têm o reconhecimento dos alunos e dos patrões, sejam estes governos ou empresários do ensino. Mas o purista ortodoxo trava a fluência da escrita, inibe os predicados que a embelezam para receber a visita dos leitores. O purista não é mau sujeito, ele erra supondo combater o erro. Um pai antiquado, rigoroso além da conta, que proíbe a filha de se fazer bonita para os rapazes. E, sendo intolerante como um pai de outros tempos, adora palavras daquele repertório dos oradores e passadistas em geral.

Grandes criadores na literatura mundial já se queixaram amargamente das restrições desses fiscais do vernáculo, que não abrem um livro em busca de prazer estético, e sim de erros para denunciar ou criticar. Não são erros, mas carícias de quem adivinha, pelo trato constante e apaixonado, as mil possibilidades que as palavras oferecem aos seus verdadeiros amantes. Palavras, palavras. Poetas e escritores dormem com elas, decifram seus mistérios. Nessa intimidade o texto é concebido. Já os gramatiqueiros, brandindo regras inflexíveis, não cansam jamais em sua tarefa de patrulhar as aventuras das meninas com os seus artistas.

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