Também da revista Veja dessa semana, uma reportagem muito interessante sobre o processo orçamentário público no Brasil:
Rumo a um horizonte artificial
Outra vez, votação do Orçamento produz peça que coloca as finanças públicas no vôo cego do gasto alto e crescimento baixo
Leandra Peres
O Congresso finalmente aprovou o Orçamento da União para 2006. Foram quatro meses de atraso, tempo suficiente para bater um recorde que não se repetia desde 1994, quando a peça orçamentária só foi aprovada em outubro. No Orçamento de 2006, pretende-se arrecadar 546 bilhões de reais e os gastos previstos são de 494 bilhões – a diferença, de 52 bilhões, será integralmente usada para pagar dívidas do governo. Na proposta aprovada na semana passada, a despesa mais robusta permanece com o pagamento de aposentados e pensionistas (163 bilhões de reais), seguida da folha salarial dos servidores públicos (104 bilhões de reais). O investimento, por sua vez, também continua raquítico, como nos Orçamentos anteriores. Neste ano, o montante previsto é de 21 bilhões de reais. Por trás desses grandes números, o Orçamento de 2006 repete a velha seqüência de vícios brasileiros: descontrole de gastos, aumento de impostos e taxa inexpressiva de investimento – uma trinca perversa que apenas arrocha o bolso do contribuinte e não ajuda a melhorar o país.
A voracidade com que o governo aumenta seus gastos é visível por toda a parte no Orçamento. Um exemplo eloqüente é o reajuste de salários. Quando enviou o projeto orçamentário ao Congresso, o governo estimava gastar 3,4 bilhões com o reajuste do salário mínimo para 321 reais e 1,5 bilhão com o aumento dos vencimentos dos servidores públicos. Agora, tudo mudou. Como o aumento dos servidores será maior, o gasto saltará de 1,5 para 5,1 bilhões. E, com a decisão de reajustar o salário mínimo para 350 reais neste ano eleitoral, a despesa total subirá de 3,4 bilhões para 9,1 bilhões de reais. Com tanta generosidade com o bolso do contribuinte, a União baterá seu recorde de gasto na última década – chegará a 19,3% do PIB. "Precisamos criar um departamento de corte de gastos ou corremos o risco de um problema fiscal em breve", diz Raul Velloso, especialista em finanças públicas. O aumento de impostos, como sempre, não está explícito, mas pode chegar à ordem dos 15 bilhões de reais. Esse é o buraco correspondente ao que o Orçamento prevê gastar além do que a Receita acha possível arrecadar. Portanto, segundo a lógica mais elementar, se os gastos foram feitos tal qual se prevê, o governo terá de arrecadar 15 bilhões de algum lugar – no caso, do bolso do contribuinte.
"Como a previsão é de aumento dos gastos, é provável que a carga tributária tenha de subir novamente", diz a economista Beatriz Meirelles. O caso fica ainda mais grave diante do investimento ínfimo previsto para 2006. Ao elevar os gastos com despesas ligadas ao funcionamento da máquina pública, pagamento de aposentadorias, salários e programas sociais, o governo reduz na mesma proporção sua capacidade de investir. Por isso, o investimento total do governo federal só superou 0,6% do PIB em apenas três anos na última década. É lamentável, dado que os investimentos são uma alavanca para a economia. Se o governo constrói uma estrada, está reduzindo o custo que as empresas têm para vender seus produtos. A economia que o setor privado obtém se transforma e produz um ambiente virtuoso: gera novos investimentos, que geram mais empregos, que geram crescimento econômico, que gera novos investimentos... "O volume de despesas correntes no Brasil é absurdo. O Estado gasta demais, não oferece serviços de qualidade ao cidadão e não investe o suficiente para garantir o crescimento econômico", avalia o professor da Universidade Princeton José Alexandre Scheinkman.
A dificuldade em fazer um Orçamento real no Brasil começa na concepção do projeto. Quando chega ao Congresso, em agosto de cada ano, a proposta de Orçamento já está defasada. Para elaborar o projeto, o Ministério do Planejamento usa dados do mês de junho para fazer suas projeções de receitas. Quando o Orçamento passa pela análise dos parlamentares, começa o jogo de faz-de-conta. O Congresso, com a desculpa de atualizar estimativas feitas pelo Executivo, invariavelmente infla as receitas de modo artificial e usa esse dinheiro para atender a demandas que beneficiam suas bases eleitorais. O resultado é sempre o mesmo: aprovado o Orçamento, o Executivo faz um decreto pelo qual segura certos gastos e libera apenas o que quer. Há duas razões que explicam essa fragilidade. Uma é o fato de o Orçamento não ser impositivo. Ou seja: o Congresso autoriza o gasto, mas cabe ao Executivo decidir se o gasto será ou não executado. O segundo problema está na rigidez das despesas. Mais de 90% delas são obrigatórias por força da Constituição. Na prática, o Congresso só legisla de fato sobre uma ínfima parcela de 6,8% da arrecadação.
Além disso, a Lei de Diretrizes Orçamentárias, que define as grandes linhas do Orçamento do ano seguinte, é uma lei inócua. Ela surgiu de um improviso do então deputado José Serra na Constituinte em 1988 quando se ia votar o Orçamento bianual – nos moldes britânicos. O Orçamento bianual dá à discussão do Orçamento um caráter contínuo. O governo anualmente atualiza a proposta orçamentária para votação e apresenta a do ano subseqüente. Com isso, tem-se um debate mais intenso sobre o Orçamento, e não o atropelo de todos os anos, nos meses de novembro e dezembro, como acontece no Brasil. A LDO é uma lei de diretrizes para confeccionar o Orçamento, mas a lei do Orçamento lhe é hierarquicamente superior – e, portanto, não há razão que impeça que as diretrizes orçamentárias sejam revistas meses depois. Uma vez aprovada a lei de Orçamento, a LDO perde validade. Assim, mobiliza-se inutilmente o Congresso para se dar apenas sinalizações gerais. A imprensa e muitos parlamentares imaginam que na LDO está se discutindo o Orçamento. Não se está. Em vez de perder tempo com isso, melhor seria rediscutir o que quase se conseguiu na Constituinte: o Orçamento bianual no sistema britânico.
Melhorar a qualidade do Orçamento no Brasil não é tarefa simples. Outro passo seria reduzir o volume das despesas obrigatórias, o que implica corte de gastos e desvinculação de receitas – duas medidas que enfrentam grande resistência política. Só depois que o Congresso e o governo tiverem mais flexibilidade para gastar é que se pode pensar num orçamento impositivo. Em países onde o Orçamento é quase que mandatório, como nos Estados Unidos, a participação do Congresso se dá na definição das prioridades de gastos, e não no aumento artificial de receitas. O Congresso americano primeiro avalia a estimativa de receitas elaborada pelo Executivo. Uma vez definido quanto o governo vai arrecadar, os recursos são alocados em grandes áreas, como saúde, educação e defesa. A partir daí, a discussão sobre a proposta enviada pelo Executivo é feita pelas comissões setoriais. Ou seja, a comissão de educação analisa os gastos propostos para aquela área, e assim por diante. Enquanto o Congresso e o governo brasileiros insistirem no jogo de faz-de-conta, há pouca esperança de cortar gastos, reduzir impostos, aumentar os investimentos e se transformar em um país normal.
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